Escrito en
DIREITOS
el
Realidade vivida por moradores em comunidades nas quais as UPPs foram instaladas remete a uma rotina de violações de direitos, comum nas periferias brasileiras
Por Igor Carvalho. Colaborou Glauco Faria
Esta matéria faz parte da edição 128 da revista Fórum. Compre aqui.
“Ontem, pela manhã, chamei meu filho mais novo, de 6 anos, para cortar o cabelo. Ele disse que só vai cortar o cabelo quando o Nego voltar, porque quer fazer luzes. Como eu explico que o Nego não vai mais voltar?”
[caption id="attachment_36549" align="alignleft" width="300"] Nas comunidades ocupadas pelas UPPs, há denúncias de violência praticada pelos agentes (Tânia Rêgo / ABr)[/caption]
O depoimento acima é de Fátima Pinho de Menezes, de 39 anos, mãe de Paulo Roberto Pinho de Menezes, conhecido como Nego, que não vai mais levar o irmão caçula para cortar o cabelo, como sempre fazia. Aos 18 anos, o jovem, que morava em Manguinhos, se tornou estatística como mais uma das vítimas da violência policial nas chamadas “comunidades pacificadas” do Rio de Janeiro.
Às 2h da madrugada do dia 17 de outubro, Nego estava na casa dos pais e decidiu atravessar a comunidade para dormir na casa de uma amiga. Amigos que estavam com o jovem relataram que no caminho ele teria sido abordado por policiais da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) de Manguinhos e levado para um beco da favela.
“Eram 2h30 quando uma menina bateu na minha porta, desesperada e gritando: ‘Corre tia, corre, eles estão batendo muito no Nego lá no beco.’ Aí, saímos nós duas correndo. Quando cheguei lá, tinha vários meninos para fora do beco e os policiais tampando a entrada para que ninguém passasse”, conta Fátima, que após “gritar muito” conseguiu furar o bloqueio policial. “Realmente achei que ia chegar lá e ver meu filho machucado e algemado, com a cara na parede. Mas, quando cheguei, meu filho estava caído no chão, com um pano imundo de sangue na cabeça.”
Ao suspender a cabeça do filho, a realidade era diferente da que havia imaginado. “Ele olhou para mim e deu dois suspiros. Morreu ali.” Porém, um dos policiais tenta motivá-la. “Mãe, se preocupa não, que ele está vivo, acabamos de ligar para o Samu.” A demora fez com que amigos e a mãe carregassem o corpo de Nego para fora da comunidade e o colocassem dentro de um carro. Quando chegou ao hospital, a notícia. “Seu filho está morto, senhora”, disse o médico. “Morri junto ali, na hora em que recebi a notícia”, conclui Fátima, chorando.
De acordo com testemunhas, cinco policiais levaram Paulo Roberto até o beco e lá o surraram até a morte, projetando a cabeça do jovem diversas vezes contra a parede. Em nota, a Polícia Militar (PM) do Rio de Janeiro informou que o rapaz teria sofrido um mal súbito após a abordagem. A análise pericial feita no local indicou que há sangue humano nas paredes do beco.
Fátima explica que o filho “era perseguido em Manguinhos”. Tudo começou quando Nego foi preso, na Lapa, por furto. Após cumprir a pena de três meses, o jovem retornou para Manguinhos e deu de cara com o agente que o havia prendido, era o “Martelo” (o nome verdadeiro do policial não é de conhecimento da família e não foi revelado pela PM). “Desde então, esse ‘Martelo’ não podia ver meu filho que parava para dar esculacho, teve um dia que o Nego foi parado cinco vezes por ele”, explica Fátima, que lembrou de uma das abordagens, quando estava com o filho. “Estávamos abraçados e o ‘Martelo’ começou a gritar: ‘Ô, gordo safado, quando eu mandar você parar, você para, ladrãozinho de merda. Vou te pegar, moleque’ e puxou a pistola, na minha frente. No final, ainda disse: ‘Se eu te pegar, vou te matar, moleque’.”
Conforme a PM, o policial não trabalha na comunidade desde o dia 2 de outubro, quando foi transferido para a UPP de Lins. Porém, moradores afirmam que é comum que policiais afastados após denúncias voltem a Manguinhos. “Inclusive eles chegam fardados e andam aqui pelos becos”, afirmou uma moradora que não quis se identificar e que afirma ter visto Martelo “algumas vezes depois que foi afastado.”
Prática recorrente
Entre o caso de Nego, em Manguinhos, e o de Amarildo Dias Souza, na Rocinha, há uma diferença: o tamanho da repercussão. O pedreiro foi assassinado por agentes da UPP após uma sessão de tortura; porém, seu corpo ainda não foi encontrado (ver matéria na pág. 6). Desaparecido desde o dia 14 de julho, Amarildo se tornou figura emblemática do que significa o embate entre as UPPs cariocas e as populações das comunidades submetidas ao jugo policial. A pergunta “Onde está o Amarildo?” foi repetida em todo o País, nas manifestações, nos jornais, revistas, sites e até fora do Brasil.
Porém, há outros dois elementos que distinguem os dois casos. O laudo inicial do Instituto Médico Legal (IML) relatou que as lesões encontradas no corpo de Paulo Roberto não teriam sido a causa da morte do jovem, o que fez com que parte da mídia tradicional praticamente ignorasse as agressões sofridas por ele. E há outro ponto: “Paulo Roberto tinha várias passagens pela polícia, havia sido solto pela Justiça, mas, como se sabe, embora não exista pena de morte neste País, faz parte do senso comum, confirmado pela grande mídia todos os dias, que ‘bandido bom’ é ‘bandido morto’”, diz a jornalista e doutoranda em Serviço Social Cátia Guimarães, em artigo publicado no Observatório da Imprensa.
Mas se o caso de Nego não alcançou tanta repercussão, ele reflete uma lógica que se repete no comportamento policial nas UPPs. Quem afirma é a cientista social e moradora da favela do Borel, Mônica Francisco. “Aqui na favela, todos os dias há homens e mulheres sendo esculachados, ofendidos, além de outros abusos.”
Para Mônica, que também é representante da Rede de Instituições do Borel, é impossível não notar o comportamento dos agentes na rotina da comunidade. “A tortura, as agressões, os desaparecimentos e as mortes são práticas comuns. Questionamos, aqui, o discurso do Estado, comprado e propagado por boa parte da mídia, de que vivemos nessas regiões um novo modelo de polícia, com novos policiais, com treinamento diferenciado e noções de direitos humanos. É mentira.”
Ainda no Borel, em 28 de novembro de 2012, policiais da UPP comandaram um toque de recolher no morro. Imediatamente, moradores se encaminharam para as ruas e ocuparam a comunidade. “Acho que éramos umas 2 mil pessoas naquele dia”, relembra Mônica. A decisão de se contrapor à ordem policial foi uma forma de protesto. “Se não nos posicionamos, isso se torna uma prática comum. O que houve foi uma arbitrariedade policial que queria nos impedir de ir e vir”, acusa Mônica, que afirma que já houve outras ordens dessa mesma natureza, porém individuais, nunca coletivas. “Os policiais sempre falam: ‘Isso não é hora de estar na rua, vai pra casa’. Não podemos circular na nossa comunidade?”
À época, a PM afirmou que a ordem de recolher os moradores em suas casas foi dada após os policiais escutarem tiros no alto do morro. “Isso é uma forma de responsabilizar a comunidade. De criminalizar ainda mais uma gente já sofrida. O histórico de repressão desses policiais fala por eles”, afirma Mônica.
Ditadura?
Mortes como a de Paulo Roberto e Amarildo chamam a atenção para outros casos e também para um tipo de estratégia utilizada para mascarar outras mortes que também poderiam se dar em decorrência da ação equivocada de agentes do Estado. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) do Rio de Janeiro lançou a campanha Desaparecidos da democracia – Pessoas reais, vítimas invisíveis, para promover uma reflexão maior a respeito do tema. “Há um desdobramento da luta pelos direitos humanos e pelo esclarecimento das mortes. Na democracia, também é inaceitável que a parcela mais pobre da sociedade tenha de conviver com essa violência. Não estamos contra os agentes, hoje eles são treinados para a guerra. É preciso uma polícia efetivamente cidadã”, argumenta Felipe Santa Cruz, na página eletrônica da Ordem.
A campanha atenta para episódios como o ocorrido em 31 de julho, quando o cabo Mauricio Fabiano Brasa Pessoa foi flagrado atirando no pé de um suspeito de praticar um sequestro-relâmpago, na Barra da Tijuca. O caso foi registrado como auto de resistência. Números do Instituto de Segurança Pública apontam mais de 10 mil pessoas mortas em confronto com a polícia entre 2001 e 2011. A OAB também cita levantamento realizado pelo Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Necvu/UFRJ), coordenado pelo sociólogo Michel Missepenas. Em 2005, de acordo com os 510 autos de resistência que envolvem 707 mortos, foram instaurados 355 inquéritos policiais. Três anos depois, somente 19 haviam se tornado processos, 16 deles acabaram arquivados a pedido do Ministério Público, dois estavam em tramitação e apenas um tinha resultado em condenação.
Para o antropólogo e professor do Departamento de Ciências Sociais da PUC-RJ Paulo Jorge Ribeiro, o mecanismo sugere que prevaleça a versão dada pelo policial. “O auto de resistência é uma figura criada durante a ditadura, que permaneceu sendo usada como maneira de a polícia poder se colocar diante de qualquer tipo de reação, principalmente a que leva à morte de pessoas, sem sofrer processo. Essa figura foi construída em um Estado de exceção”, observa, no site da OAB. “Ou seja, o auto de resistência é a expressão mais pura de quando a exceção vira regra. Fala-se muito que o período autoritário exacerbou as contradições e violência dos aparelhos de segurança, e isso é observado nos autos de resistência. São uma síntese perversa de como determinada parte da população é exterminada, principalmente em grandes cidades”, denuncia.
Nesse contexto, a principal vítima é jovem, negro, do sexo masculino, de baixa escolaridade e morador de áreas pobres, conforme declara o integrante da Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência Maurício Campos dos Santos, presente no lançamento da campanha, para a Agência Brasil. “Não é uma realidade só do Rio de Janeiro, é uma realidade nacional, e outros estados têm uma situação até mais grave proporcionalmente”, disse. Nas comunidades ditas “pacificadas”, como Manguinhos, onde morreu Nego, o abuso é praticamente uma rotina. “Todo dia vejo e todo mundo vê a violência cometida pelos policiais. Eles pegam os meninos, mandam colocar a cara na parede, dão soco no saco, tapa na cara e xingam de tudo que é nome. Quando os homens se juntam na praça, para jogar um carteado ou dominó, os policiais chegam e chutam tudo, rasgam as cartas. A gente não tem paz aqui não, moço”, conta Fátima, mãe de Paulo Roberto.
Na Rocinha, Michelle Lacerda, sobrinha de Amarildo, evoca o regime militar para explicar o que acontece na comunidade. “Me sinto na ditadura aqui, é uma volta no tempo. Aqui se some com moradores, torturam-se nossos homens, as mulheres sofrem com ofensas baixas, somos revistados a qualquer hora, nossas casas são invadidas sem que se peça permissão. Não é ditadura? E tudo isso com apoio do Estado. O que é isso?”
O estudo “Os Donos do Morro: Uma avaliação exploratória do impacto das Unidades de Polícia Pacificadora no Rio de Janeiro”, coordenado pelo sociólogo Ignacio Cano, do Laboratório de Análise da Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (LAV/Uerj), trata da relação das comunidades fluminenses com os policiais e analisa as consequências do trabalho realizado pela corporação. Depoimentos relatados no estudo dão conta dos abusos rotineiros. “Porque eles chegam pra revistar as pessoas, já chegam batendo. Já presenciei isso perto da minha casa, já chegam batendo. Já falam, falam direito: ‘Encosta aí, acabou’. E ficam aí catucando, eles pegam a identidade e ficam, olham e reolham até achar. Eles querem é achar alguma coisa”, afirma uma moradora não identificada do Morro dos Macacos, em entrevista publicada no estudo.
Indagados por Fórum sobre a vida na comunidade antes e depois da UPP, alguns moradores foram taxativos ao afirmar que a presença policial chega a ser mais opressiva que a do tráfico. “Antes da UPP era bem melhor. Antigamente, a polícia entrava dando tiro, e os caras [traficantes] revidavam, aí era troca de tiros, e a gente tinha que conviver com essas trocas de tiros que aconteciam de vez em quando. Hoje, não temos paz. Eles matam, somem com as pessoas, os meninos são espancados em becos, as mulheres da comunidade, até idosas, são chamadas de ‘putas’ e ‘vagabundas’ por eles”, descreve Fátima.
Para Leandro Garcia, estudante e morador da Rocinha, a UPP significou uma violência mais “imprevisível”. “Antes, a gente sabia que a violência ia existir quando a polícia subisse o morro. Hoje, tem polícia todo dia. Eu posso estar atravessando a rua e tomar um tapa na cara. Eles são racistas, não gostam de preto, e muitos deles são pretos. Vai entender... Eu e meus amigos só tomamos esculachos”, conta o jovem, que citou Amarildo. “A gente já sabia que um dia isso ia acontecer, tem muita gente aqui que passou pela mesma coisa, mas sobreviveu.”
Mônica, do Borel, questiona as duas realidades. “Não queremos conviver com o tráfico e nem com a violência policial. Ninguém gosta da polícia. Para se ter paz, tem que ter uma arma todo dia circulando na frente da sua casa? Para se ter paz é necessário haver um controle militar das práticas das pessoas na comunidade?”, pergunta. Na Rocinha, o sentimento, hoje, é de revolta contra os policiais. Michelle alerta para uma possível reação, fundamentada na opressão diária sofrida pelos moradores. “Os homens da comunidade já estão se reunindo, e vão começar a reagir mesmo, não podemos mais ser humilhados assim.”
Por conta da investigação sobre o desaparecimento de Amarildo, a delegada Ellen Souto, da Divisão de Homicídios da Polícia Civil, foi ouvir os moradores da Rocinha. Saiu da comunidade com o depoimento de 22 pessoas que dizem ter sido torturadas pelos agentes da UPP. “Eles relatam que as torturas sofridas foram sempre com o objetivo de obter informações sobre drogas e armas. Todos contaram que foram submetidos a choques elétricos com o corpo molhado e ingeriram cera líquida”, afirmou Ellen em entrevista coletiva, no dia 4 de outubro.
Em agosto, a promotora Marisa Paiva também esteve no local colhendo depoimentos sobre torturas. “Cheguei cedo na Rocinha, comecei a escutar os moradores. Eram tantas denúncias, tanta gente querendo falar, querendo desabafar. Tive que ir embora quando anoitecia, forcei a interrupção dos relatos.”
Desaparecidos pós-UPP
Em dezembro de 2008, a Santa Marta foi a primeira comunidade a receber uma UPP. O modelo, pensado e desenvolvido na gestão do governador Sérgio Cabral (PMDB), já alcançou 34 unidades e serve de base para 8.592 policiais com “treinamento de polícia de proximidade”, de acordo com o governo do Rio de Janeiro.
Ante as críticas recebidas pelas UPPs, que se aprofundaram com o desaparecimento de Amarildo de Souza, o governador Cabral se manifestou no dia 7 de agosto, em entrevista coletiva durante uma cerimônia em Rio das Ostras, região dos Lagos. “Sabe o Amarildo, que sumiu? Antes da UPP sumiam cem Amarildos por mês”, afirmou. No entanto, o estudo “Os Donos do Morro” já apontava, em maio do ano passado, um crescimento do número de pessoas que desapareceram nas 13 primeiras UPPs instaladas no Rio de Janeiro: Santa Marta, Cidade de Deus, Jardim Batam, Babilônia/Chapéu Mangueira, Cantagalo/Pavão-Pavãozinho, Tabajaras/Cabritos, Providência, Borel, Formiga, Andaraí, Salgueiro, Turano e Macacos. Com base na apuração de dados do Instituto de Segurança Pública (ISP), o estudo mostra que, desde que as UPPs se instalaram nas comunidades, a taxa média de desaparecidos por cem mil habitantes saltou de 3,60 para 6,92.
“Os registros de desaparecimento aumentaram nas UPPs, desde 2009, em maior proporção do que no resto da cidade. Os desaparecimentos são um sinal de alerta para monitorar a possível subestimação de homicídios por essa via. Por outro lado, o aumento dos desaparecimentos também poderia responder a uma maior confiança na polícia e na sua capacidade de localizar as vítimas, visto que o registro de desaparecimento em geral está associado à esperança e à urgência de encontrar a pessoa”, explica o estudo. “De qualquer forma, o perfil de gênero e idade das vítimas de desaparecimento (apenas 28% com idades entre 18 e 29 anos e mais de um terço de mulheres) é diferente do das vítimas de homicídio — composto predominantemente por jovens de sexo masculino—, o que confirma que não é possível assumir que ambos os fenômenos são equivalentes. Assim, seria muito improvável que a queda dos homicídios nas áreas de UPP pudesse ser explicada simplesmente em virtude do aumento de desaparecimentos, mas isto não significa que não seja preciso ficar alerta.” F