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A edição de julho da revista Fórum, nas bancas, traz uma reportagem especial de Maíra Streit e Jesus Carlos mostrando os efeitos da construção das novas usinas hidrelétricas do Rio Madeira nas comunidades da região. Erguidas com a promessa de incrementar o crescimento econômico do Brasil, o que se vê é a degradação que chega às populações, e quem sofre os efeitos mais fortes do abandono são as crianças e os adolescentes, muitas vezes levados à exploração sexual como única fonte de renda.
Leia também na edição 112 de Fórum matéria sobre o documentário que revive o "Massacre de Avellaneda", evento que completa uma década e que marcou a política argentina, e saiba também como o governo de Sebastían Piñera perdeu a sua "guerra imaginária contra o terror". Nossos repórteres foram à caatinga da atual Canudos, onde o sertanejo continua lutando pela sobrevivência com criatividade e por meio do uso coletivo da terra.
Na série Jornalismo em Quadrinhos, conheça Rapadura, artista que mistura o rap com ritmos nordestinos, realizando um trabalho de revitalização cultural e resgate das raízes do Nordeste. Pedro Alexandre Sanches conversa com Sérgio Ricardo, músico que transitou pela Bossa Nova e pelo Cinema Novo, e que hoje não se nega a entrar na polêmica sobre os direitos autorais no Brasil. Confira ainda artigo de Vange Leonel sobre a Marcha das Vadias e Túlio Vianna abordando a ética do advogado criminalista.
Leia também: a crônica de Mouzar Benedito; a coluna Quilombo, por Dennis de Oliveira; os Toques Musicais de Julinho Bittencourt; Espaço Solidário, com Moriti Neto, e matérias sobre a Rio+20, Cúpula dos Povos e Fórum de Mídia Livre.
Abaixo, o primeiro trecho da matéria de capa:
A outra face do progresso
As novas usinas hidrelétricas do Rio Madeira estão sendo construídas com a promessa de crescimento econômico para o Brasil. Mas o que se vê por trás das propagandas é a degradação da comunidade local, e quem sofre os efeitos mais fortes do abandono são as crianças e os adolescentes, muitas vezes levados à exploração sexual como única fonte de renda
Por Maíra Streit
Desde as primeiras horas do dia, é possível encontrar mulheres na frente dos cabarés da principal rua de Jaci-Paraná, distrito situado a 90 quilômetros de Porto Velho, capital de Rondônia. Dezenas de bares, conhecidos como “bregas”, mantêm quartos improvisados para encontros sexuais. A explosão da prostituição é apontada como um dos sintomas mais evidentes do crescimento desordenado da localidade, cuja população saltou de 6 para 20 mil habitantes em poucos anos, principalmente em função da construção da Usina Hidrelétrica de Jirau, no rio Madeira. O empreendimento atraiu para lá milhares de operários que, vindos de várias regiões do país, deixaram a família para se aventurar no oeste amazônico em busca de trabalho. O intenso fluxo migratório transformou a rotina da comunidade e agravou também outros problemas como a violência e o tráfico de drogas. Agora, entidades de defesa dos direitos infanto-juvenis alertam para a situação de vulnerabilidade a que estão submetidas crianças e adolescentes de Jaci-Paraná. Sem políticas públicas consistentes, a exploração sexual acaba sendo o caminho encontrado por muitos jovens como forma de sobrevivência. Segundo o coordenador de comissariado do Juizado da Infância e da Juventude de Porto Velho, Raiclin Lima, a grande concentração de pessoas, predominantemente do sexo masculino, em um lugar isolado e empobrecido, causou forte impacto. “As meninas, que viviam de maneira pacata, estavam acostumadas a brincar e a pescar de acordo com os costumes locais. Depois disso, começaram a ser mais assediadas e a ter contato com as relações de consumo. Um celular, um iPod e todas essas coisas que encantam em um primeiro momento tornaram-se instrumentos de troca para as práticas sexuais”, conta. Raiclin lembra que, antes da instalação da usina, as visitas do Juizado ao povoado de Jaci-Paraná se limitavam a três idas por ano, para palestras educativas. Com o tempo, a equipe intensificou a fiscalização e, hoje, há um calendário previamente determinado para as visitas, que são feitas semanalmente ou a cada duas semanas. A ação ostensiva conseguiu diminuir a presença de adolescentes em prostíbulos, mas os aliciadores são rápidos na tentativa de burlar a vigilância. O coordenador revela que a exploração sexual virou um comércio lucrativo para algumas figuras influentes e de alto poder aquisitivo da região. Meninas e meninos são trazidos de outros estados e até da Bolívia para serem expostos em festas promovidas, muitas vezes, em fazendas distantes dos olhos das autoridades. Para ele, existe uma rede camuflada, e os agenciadores atuam em locais como a “prainha”, à beira do rio Jaci, conhecida como uma das parcas alternativas de diversão para os jovens das redondezas. Lá, é alto o consumo de drogas e bebidas alcoólicas, e as músicas dançantes seguem embalando garotas de 13, 14 anos madrugada adentro, cercadas por homens muito mais velhos. Raiclin frisa que todas as denúncias que chegam ao Juizado são encaminhadas às delegacias especializadas e, dessa forma, já foram efetuadas prisões de alguns dos aliciadores. A conselheira tutelar Ângela Fortes cobra mais atenção dos governantes para a realidade das crianças e dos adolescentes de Jaci. Ela acredita que a ociosidade e a falta de investimento em educação fazem dos jovens vítimas cada vez mais fáceis. “Eles estão extremamente vulneráveis. Uma vez, atendi uma garota e, depois de muita conversa, ela confessou ser prostituída e disse que aquele era o único lugar em que se sentia valorizada”, lamenta. Ângela enfatiza que o problema só será enfrentado com o fortalecimento do ensino público, da qualificação profissional e com melhorias nas condições de saúde e moradia. E conta que já recebeu ameaças, mas não pretende se calar diante das situações que testemunha todos os dias. Conforme ela, o Brasil precisa conhecer melhor as dificuldades do povo amazônico. “Quando vamos ao Sul ou ao Sudeste e falamos sobre Rondônia, eles pensam que é um outro país”, pondera. Menos prostíbulos e mais escolas Não é difícil entender o desabafo de Ângela. As ruas sem asfalto e sem tratamento de esgoto, com seus incontáveis barracos de madeira, dão a medida da urgência que o assunto requer. Quando o tema é educação, o cenário pode ser ainda mais desolador. Em visita à Escola Estadual Maria de Nazaré dos Santos, a reportagem da Fórum encontrou pátios completamente vazios. Os alunos haviam sido dispensados por causa do calor. A umidade e as altas temperaturas, características do clima equatorial, eram intensificadas com quase 60 alunos espremidos em salas sem ventilação. Muitos passavam mal. Os funcionários tiveram que trazer seus próprios ventiladores para conseguirem trabalhar. A carga horária foi reduzida para quatro aulas por dia, de 30 minutos cada. E o que aprendem em tão pouco tempo? “Nada”, respondeu, indignada, uma aluna que deixava os portões da escola. A situação se arrasta desde o início do ano. Mas, segundo a diretora Cláudia Setúbal, já foi pior. Em 2011, os estudantes eram divididos em quatro turnos, para revezarem o espaço e os professores disponíveis. Algumas séries funcionavam apenas no horário de almoço. Para acabar com esse corre-corre que, segundo ela, era desgastante para todos, o jeito foi sobrecarregar o número de pessoas por sala e extinguir as turmas do meio-dia. A Escola Maria de Nazaré dos Santos possui, ao todo, 1,3 mil alunos do Ensino Fundamental e do Médio. É o único colégio estadual de Jaci-Paraná; os outros dois são da prefeitura. As três instituições de ensino tentam, precariamente, manter a atenção dos estudantes em uma região que, de acordo com levantamento da Delegacia de Proteção da Criança e do Adolescente (DPCA/RO), conta com 68 pontos de prostituição. Na opinião da diretora, o assédio às alunas ficou incontrolável. “Veio uma quantidade exorbitante de homens para cá por causa das obras. As meninas já aprenderam, inclusive, a diferenciar os cargos mais elevados pela cor do uniforme que eles usam”, afirma. Cláudia relata que costuma vigiar a movimentação em torno da escola e anota a placa dos carros que, constantemente, buscam as adolescentes. “Elas preferem os engenheiros”, revela. Os filhos das usinas Solange* tem 15 anos e desistiu das salas de aula quando fazia a antiga 4ª série. Sonhos? “Tenho não, senhora”, diz. Pela primeira vez, ela começa a se preocupar com o que será do amanhã. A menina está grávida de três meses, fruto do envolvimento rápido com um dos milhares de “camargueiros” – como são chamados, na região, os operários da construtora Camargo Corrêa. O namorado paraense chegou a Rondônia com o pai, tios e primos para tentar emprego na Usina de Jirau. Quando soube do bebê, disse que não era dele e se negou a ajudar. Solange pensa em voltar para a escola, mas admite que, a partir de agora, será tudo mais difícil. A amiga Daiane* vive um drama parecido. Ela conta que os “homens da firma” conquistam as garotas oferecendo bebidas, drogas, dinheiro e até comida em troca de favores sexuais. Com 15 anos, já foi casada duas vezes, e o último relacionamento, com um ex-funcionário das obras, acabou em decepção. Ela tem quase certeza de que está grávida. Ainda não teve coragem de fazer o teste, mas diz que sente muito sono e enjoo e, por isso, não consegue mais ir à aula. Se confirmar a suspeita, já decidiu pelo aborto. O rapaz que a engravidou tem dois filhos em Manaus, um em Rio Branco, e abandonou outra menina grávida em um distrito vizinho. Provavelmente, não assumiria também o filho de Daiane. Enquanto isso, ela acaba cedendo às ofertas de outros “camargueiros” para pagar as contas da casa que divide com uma colega, já que nunca se entendeu com o padrasto; a mãe, dependente de drogas, tampouco pôde ajudá-la. Histórias como essas são cada vez mais comuns. De acordo com dados da Maternidade Municipal de Porto Velho, a gravidez na adolescência apresentou um aumento significativo nos últimos anos. Atualmente, o índice de partos realizados em meninas de 10 a 19 anos está em torno de 28% do total de atendimentos. A diretora da unidade, Ida Perea, afirma que a menor taxa registrada foi de 25%, em 2010, após uma campanha massiva de prevenção. Porém, em pouco tempo, o número voltou a subir e alcançou o pico de 31%. Ida explica que a Região Norte lidera o ranking de mães adolescentes, seguida do Centro-Oeste, Nordeste, Sudeste e Sul. Em Porto Velho e áreas adjacentes, a principal preocupação é com as garotas abaixo de 14 anos, pois é nessa faixa etária que o crescimento do número de casos de gravidez tem sido mais expressivo. A médica lembra que, pela lei, manter relações sexuais com pessoas menores de 14 anos é considerado estupro de vulnerável, mesmo que o adulto alegue que houve consentimento. “Nesse caso, podemos apontar para um aumento no número de estupros na região”, observa. Ela chama a atenção, ainda, para o fato de que boa parte dessa nova geração de porto-velhenses está nascendo sem qualquer apoio do pai. “A criança já vem ao mundo sem um direito básico, elementar, que é de ter a identidade paterna reconhecida”, aponta. O juiz titular do Juizado da Infância e da Juventude de Porto Velho, Dalmo Bezerra, diz que, com a grande quantidade de homens chegando e saindo do estado, fica difícil, muitas vezes, encontrar os autores da violência sexual. “Aqui eles são conhecidos como o ‘goiano’, o ‘paulista’, o ‘piauí’. Não têm sobrenome. Quando fomos procurar, existiam dezenas de pessoas com esses mesmos apelidos que já tinham ido embora”, ressalta. Dalmo destaca que os “barrageiros” percorrem o País atrás de trabalho em grandes obras, como as hidrelétricas do rio Madeira, e não costumam ficar muito tempo no mesmo lugar. Por isso, é preciso que a cidade esteja preparada para os impactos do grande fluxo migratório e, principalmente, para as consequências que virão quando a construção dos empreendimentos acabar. Para ele, entre os principais efeitos está a elevação do desemprego, a violência, a incidência de doenças sexualmente transmissíveis (DSTs) e a gravidez precoce. O número de crianças sem registro do pai nos documentos também é apontado como um alerta. Ele lembra que a maioria dos jovens envolvidos, hoje, com a criminalidade não possui pai reconhecido. “Isso deve querer nos dizer alguma coisa. Vamos ter reflexo, ainda, por muitos anos”, finaliza. Leia o restante da reportagem na edição de julho da revista Fórum, nas bancas.