Mais de 3 mil mulheres marcharam mais de 100 quilômetros para comemorar o centenário do Dia Internacional de Luta da Mulher. Veja como foi a caminhada.
Por Marcela Mattos
Em defesa de liberdade, autonomia e igualdade, 3 mil mulheres de todos os cantos do país marcharam mais de 100 quilômetros, de Campinas a São Paulo, para celebrar o centenário do Dia Internacional da Mulher. A 3ª Ação Internacional da Marcha Mundial de Mulheres (MMM) coloriu com tons de roxo, vermelho e lilás as pistas da Rodovia Anhanguera, entre os dias 8 e 18 de março, culminando com a chegada na Praça Charles Miller, em frente ao estádio do Pacaembu, onde as marchantes foram recebidas com uma faixa que simbolizava um abraço lilás.
Nesta 3ª ação, a plataforma de reivindicações se baseou em quatro eixos: autonomia econômica das mulheres, bens comuns e serviços públicos (contra a privatização da natureza e dos serviços públicos), violência contra as mulheres, e paz e desmilitarização, temas sempre presentes nas discussões ao longo dos dez dias de caminhada.
Durante os dez dias, o compromisso e a disciplina das ativistas foram essenciais para superar barreiras ao longo do trajeto. Para aumentar as dificuldades, cabe ressaltar que o movimento feminista quase não dispõe de recursos “porque é pouco reconhecido e valorizado”, lembra Sonia Coelho, a Soninha da Sempre Viva Organização Feminista (SOF) e da Executiva da MMM.
O que marcou essa ação foram a resistência e um forte processo de autoorganização e trabalho coletivo que durou mais de 11 meses entre reuniões de planejamento, mobilização de ativistas, organização das delegações, debates, atividades de formação, arrecadação financeira, confecção de bandeiras e instrumentos etc. Durante os dez dias de marcha, as militantes se dividiram em comissões de cozinha, infraestrutura, segurança, saúde, comunicação, água, creche, formação e cultura. “Acreditamos que só a partir de nossa organização e mudança da consciência do conjunto da sociedade é que conquistaremos as mudanças que sonhamos”, explica a coordenação da Marcha.
Além das comissões, as mulheres ainda se autoorganizavam em equipes rotativas para desempenhar outras tarefas, como a limpeza dos banheiros e alojamentos, a distribuição e limpeza das marmitas, entre outras. Tudo isso combinado ao esforço de caminhar cerca de 12 km por dia e ainda participar das atividades de formação que aconteciam no período da tarde, no alojamento. No entanto, todas pareciam estar bem preparadas para enfrentar qualquer desconforto. A convivência intensa ajudou a exercitar valores como paciência e solidariedade, além de, principalmente, fortalecer o grupo na luta.
Para Soninha, o processo de organização foi uma das principais vitórias do movimento. “Éramos mulheres de todos os estados. De quase 80 anos até jovens, índias, negras, uma grande diversidade de mulheres! E apesar das dificuldades, as mulheres participaram em grande número das atividades de formação”, comemora.
A reação do machismo Os xingamentos por parte dos motoristas ao longo da estrada – “vão lavar roupa, suas desocupadas!” – foram constantes, mas sempre contra-atacados com as palavras de ordem, como Te cuida, te cuida, te cuida seu machista! A América Latina vai ser toda feminista! Já quando a marcha passava por dentro dos bairros, apareciam mais manifestações de apoio, olhares de surpresa e acenos de solidariedade no lugar das ofensas.
A ativista da MMM, Alexandra Peixoto, de 35 anos, conta que às vezes “era difícil segurar a ira ao ouvir frases do tipo: ‘vai trabalhar, vai arrumar uma roupa pra lavar’, ou ainda um cidadão segurando uma vassoura dizendo pra gente ir varrer um chão”, comentando que se chocava ainda mais quando os mesmos comentários vinham de mulheres. “Elas diziam que para sermos respeitadas deveríamos respeitar as pessoas que estavam indo para o trabalho, como se fôssemos um monte de vagabundas sem ter nada melhor que fazer...”.
Também é necessário lembrar que alguns estigmas ainda precisam ser enfrentados dentro do próprio grupo. Em discussão sobre sexualidade, Nalu Faria, da coordenação da MMM, ressaltou que “numa sociedade de opressões não temos como dizer que optamos livremente. Não só na sexualidade, mas em tudo, como amizades, trabalhos etc. Existem condicionamentos”.
Nalu falou sobre as dificuldades do feminismo ao longo da história, principalmente na questão do racismo e da orientação sexual. Na questão do racismo, as negras ainda reclamam mais representatividade nos espaços de formação do movimento. E no caso das lésbicas, preconceitos pessoais de uma parcela das militantes ainda se manifestam.
No entanto, a atitude das lésbicas presentes na marcha foi de uma coragem e força muito grandes, como ressalta Alexandra. “Éramos as mais contundentes, ativas, no sentido de não deixar a poeira baixar e denunciar essa contradição dentro do próprio movimento. É um sinal muito sério de que dentro do movimento feminista ainda temos muito a avançar”.
Uma das ações de enfrentamento desse preconceito foi um beijaço, organizado na chegada da marcha em Jundiaí. Casais de mulheres fizeram uma roda e se beijaram ao som dos batuques. “O beijaço é um ato político de ação direta. Pode até chocar, mas a ideia é naturalizar algo que já é natural. Isso que vocês estão vendo é realidade na vida de muitas mulheres, que sofrem preconceito”, discursou Valda Neves, militante da delegação do Rio Grande do Sul. “Não é possível conceber lutar contra apenas um tipo de violência, aquela do homem contra a mulher. É preciso lutar contra todos os tipos de violência, sem distinção”, completou Alexandra.
O comportamento da mídia Já o boicote da imprensa comercial, que insistiu em ignorar o movimento ou então desqualificar a ação, sinaliza que a caminhada ainda será mais longa do que se pode prever.
As atividades de formação contemplaram essa discussão durante a marcha, discutindo o tema da mídia e da luta feminista num dos grupos de trabalho na tarde do dia 10. “A nossa luta é todo dia. Somos mulheres, e não mercadoria”, a palavra de ordem traduz a rotina de combate ao capitalismo, que se apropria da imagem da mulher para vender os mais diversos produtos. “Nosso movimento se contrapõe ao modelo de mulher que, historicamente, eles tentam colocar”, explica Soninha.
“É comum que eles tentem abafar nossa fala. É um ano eleitoral. Nossas pautas – aborto, reforma agrária, soberania alimentar, entre outras – não são pautas que tenham relevância nesse momento de disputa política”, avalia Soninha, ressaltando que a mídia sempre tratou de desqualificar o feminismo, por isso a opção de não mostrar toda essa organização das mulheres em movimento.
Organizada em mais de 30 países desde 2000, a Marcha Mundial das Mulheres já realizou duas ações internacionais, em 2000 e 2005. Em 2010, além do Brasil, cerca de 50 países de quatro continentes realizaram ou estão realizando marchas e outras atividades de luta e formação política. A caminhada brasileira terminou dia 18, em São Paulo, mas as ações continuam, encerrando-se apenas em 17 de outubro, com novos atos e marchas simultâneas.
Essa matéria é parte integrante da edição impressa da Fórum 85. Nas bancas.