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Quando o Judiciário se arma: O sinal mais grave de ruptura democrática nos EUA – Por Gisele Agnelli e Luciana Bauer

A coisa é tão grave que debate inédito e alarmante tem ganhado força: cerca de 50 juízes federais consideram criação de uma força armada de segurança própria

Créditos: Danne/Pexels
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Nos bastidores do sistema judicial dos Estados Unidos, um debate inédito e alarmante tem ganhado força: cerca de cinquenta juízes federais estão considerando a criação de sua própria força armada de segurança, fora da alçada do Departamento de Justiça. O motivo? Medo. Não apenas da crescente violência política, mas do próprio Executivo federal, agora sob a liderança de Donald Trump em seu segundo mandato.

Trata-se de um sintoma gravíssimo de erosão institucional. Quando o Poder Judiciário de uma democracia liberal sente que não pode mais confiar na proteção fornecida pelo próprio Estado, e cogita se armar para garantir sua independência, estamos diante de um colapso do pacto republicano.

Historicamente protegidos pelo U.S. Marshals Service, os juízes federais agora temem que essa força esteja politicamente capturada. Segundo investigações do The Guardian, há episódios concretos de intimidação contra magistrados: ameaças diretas, pacotes suspeitos, “swatting” (uso indevido da polícia como forma de assédio) e campanhas de exposição pública por parte da Casa Branca. Um juiz da Califórnia chegou a receber ameaças de morte após considerar Trump potencialmente culpado por crimes relacionados à eleição de 2020.

Neste contexto, a resposta do Judiciário é um apelo defensivo: a proposta em debate prevê retirar a segurança dos juízes da supervisão do Departamento de Justiça e vinculá-la diretamente à Suprema Corte, sob coordenação do Presidente do Supremo John Roberts. Em tese, o movimento garantiria maior neutralidade; na prática, representa a institucionalização da desconfiança entre poderes.

Essa tensão se insere numa escalada autoritária sistemática promovida pelo trumpismo e articulada por think tanks como a Heritage Foundation, autora do chamado Projeto 2025. Seu objetivo declarado é “desconstruir o Estado administrativo”, abolindo agências independentes e subordinando toda a máquina pública à Presidência. O objetivo é claro: concentrar poder no Executivo, fragilizar os freios e contrapesos, deslegitimar as instituições de controle.

É muito importante considerarmos que neste momento, que Suprema Corte está sendo pressionada a limitar o alcance de liminares nacionais que suspenderam políticas federais autoritárias, como a tentativa de revogar o direito à cidadania por nascimento. O vice-presidente JD Vance, numa declaração pública recente, classificou como “profundamente errada” a visão de que o Judiciário deve conter os excessos do Executivo, negando, na prática, o papel histórico da revisão judicial estabelecida desde Marbury vs. Madison (1803). Trata-se de um revisionismo institucional perigoso, que relativiza a separação de poderes e legitima a submissão do Judiciário à “vontade do povo”, interpretada unicamente pelo Executivo. O resultado? Um ambiente de intimidação, judicialização autoritária e fragilização das garantias constitucionais.

A literatura sobre insurgência e supremacismo branco nos EUA oferece alertas eloquentes. Em “Traga a guerra para casa” (livre tradução), a historiadora Kathleen Belew argumenta que o movimento de poder branco nos EUA opera como uma insurgência paramilitar deliberada, com objetivo de instaurar uma nova ordem racial, colapsando as instituições federais. Outros estudos, como “Hate in the Homeland” (Cynthia Miller-Idriss) e “Homegrown” (Jeffrey Toobin), apontam o crescimento de milícias internas como sintoma de uma democracia em regressão.

O que une esses grupos extremistas ao Projeto 2025 não é a convergência estratégica: desconfiança total do Estado, desprezo pelo multiculturalismo e apelo à força como modo de reordenação social. Quando esses grupos encontram ressonância institucional, seja por meio de cortes capturadas ou de um Executivo autoritário, os pilares democráticos entram em colapso. E é aqui que o conceito de estado dual, proposto por Ernst Fraenkel, se torna relevante: quando normas legais e medidas de exceção convivem dentro de um mesmo regime, a democracia torna-se uma fachada. Casos como Polônia e Hungria mostram o caminho: o autoritarismo começa atacando juízes, dissolvendo garantias e promovendo uma justiça seletiva.

A proposta de uma força armada própria para juízes federais, por mais controversa que seja, reflete um impasse profundo. Quando um poder da República sente necessidade de romper com o monopólio da força garantido pelo Executivo, é porque o pacto institucional já não se sustenta. Trata-se de um alerta vermelho. A lógica da autodefesa institucional sinaliza que a confiança mútua entre os poderes (elemento fundacional de qualquer república) está corroída. E, quando a confiança é substituída pela lógica de sobrevivência, o próximo passo é a fragmentação.

O segundo mandato de Donald Trump não é apenas uma continuação de seu projeto político; é uma nova etapa de corrosão do constitucionalismo americano, agora com foco no desmantelamento do Judiciário como último bastião institucional.

*Gisele Agnelli é colunista, socióloga e cientista política.

*Luciana Bauer é jurista e pesquisadora em direito constitucional comparado. Ambas acompanham a política dos Estados Unidos com foco em erosão democrática, autoritarismo e institucionalidade.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.

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