Na última semana, as redes sociais brasileiras foram tomadas por uma onda curiosa e controversa: vídeos virais de mulheres (muitas adultas, algumas idosas)cuidando de bonecas hiper-realistas conhecidas como bebês reborn. Elas as alimentam, embalam, trocam fraldas, levam ao pediatra fictício e registram tudo com afeto genuíno e detalhismo quase ritualístico. A princípio, para os desavisados, parece um desvio bizarro, um fetiche ou uma cena de teatro experimental. Mas o fenômeno tem ganhado adesão e atenção justamente por ser sintoma de algo muito mais profundo: não estamos diante de um simples brinquedo ou passatempo. Estamos olhando, talvez sem querer, para um espelho da nossa própria crise existencial contemporânea.
Zygmunt Bauman diagnosticou a nossa era com a precisão de um cirurgião filosófico: vivemos tempos líquidos, onde tudo que é sólido: vínculos, identidades, relações, convicções, escorre pelos dedos como água. Nessa modernidade fluida, os afetos se tornam frágeis, os compromissos descartáveis e os laços humanos constantemente ameaçados pela impermanência. O bebê reborn aparece como um símbolo dessa liquidez afetiva: é um simulacro do afeto materno, um amor sem risco, sem conflito, sem frustração. Uma maternidade estéril de dor e cheia de controle. É o filho que não cresce, que não responde, que não exige subjetividade: é afeto sem alteridade, o outro sem ameaça, o vínculo sem peso. Um amor à prova de frustrações.
O bebê reborn é também a tentativa desesperada de congelar o que o mundo insiste em dissolver. É uma âncora afetiva para quem foi lançado ao mar revolto do abandono, da viuvez, da infertilidade, da solidão. Em vez de encarar o luto, substitui-se o objeto perdido por um simulacro. Como diria Bauman, é a “segurança substituta” que nossa época oferece: em vez do risco do encontro real, opta-se pelo conforto de uma ilusão segura. Não é coincidência que o fenômeno cresça justamente em um país onde o tecido social foi esgarçado por anos de necropolítica, onde a solidão foi transformada em algoritmo e a fragilidade emocional virou combustível de mercado. Os bebês reborn são o filho da era líquida, filhosfeitos de plástico, mas preenchidos com os afetos derretidos de um tempo em colapso.
Jacques Lacan, com sua argúcia cortante, nos ensinou que o desejo nasce da falta. Desejamos porque algo nos falta. O bebê reborn, nesse ponto de vista, é uma tentativa de tamponar a ferida aberta da ausência: a ausência do filho que não nasceu, do amor que não ficou, da presença que nunca mais voltará. O desejo que se inscreve no corpo dessas mulheres não é o desejo do bebê em si, mas daquilo que o bebê representa: completude, sentido, apego. É o Real irrompendo na vida psíquica como uma dor constante, insuportável, que se tenta calar com uma fantasia de carne fria. O reborn não seria, então, a realização do desejo, mas sua negação, uma forma de não desejar mais, porque se entregou ao objeto que se julga definitivo. É, no limite, o congelamento do desejo em forma de boneca.
Contudo, Deleuze e Guattari oferecem uma guinada radical: para eles, o desejo não nasce da falta, o desejo é produção, fluxo, conexão viva com o mundo. Quando há um trauma, o corpo desejante não se paralisa, ele reconfigura seus caminhos, busca outros canais para continuar produzindo realidade. Nesse sentido, o bebê reborn não é uma negação, mas uma reconexão: não se trata de substituir o que faltou, mas de criar novos circuitos de sentido. É o corpo dizendo: “eu ainda desejo, mas agora desejo assim.” É o inconsciente em ação, não como carência, mas como potência de criação. A boneca hiper-realista, então, não é uma fuga do real, mas uma fabulação que permite à subjetividade continuar existindo. Um pequeno corpo de silicone que reconecta fluxos interrompidos pelo trauma, pela perda, pelo colapso.
E agora, caro leitor: de que lado você está? Com Lacan, que vê no reborn o sintoma de uma ferida que não cicatriza, o gozo melancólico de uma falta eterna? Ou com Deleuze e Guattari, para quem o reborn é máquina desejante, um gesto estético e existencial de quem se recusa a morrer psíquica e afetivamente? A resposta, talvez, não seja absoluta. Mas o que podemos fazer é refletir. Porque o que está em jogo não é uma simples boneca, é o modo como habitamos o mundo, como elaboramos as perdas, como seguimos amando num tempo em que tudo, até o amor, é vendido em lives e algoritmos. Que tipo de desejo habita você: aquele que chora pela falta ou aquele que insiste em criar?