Brasília foi contada oficialmente como mito que impõe aos seus ouvintes um infinito vínculo com um passado histórico que pouco tem a ver com a realidade vivida pelo povo comum durante o período de construção e consolidação da Capital Federal. O mito da história oficial imposto de forma sólida pelo discurso do dominador conserva como presente imutável tudo o que engenhosamente foi criado e narrado a respeito daquele período.
Três figuras de destaque são geralmente apresentadas como construtores de Brasília: Juscelino Kubitschek, Oscar Niemeyer e Lúcio Costa. Todas as outras personagens atuam como coadjuvantes e são normalmente referenciadas na mesma perspectiva: homens brancos que ocupam cargos de comando. Aos demais é relegado um corpo com mãos, braços e pés coletivos – os candangos – que bondosamente se uniram aos heróis sem nenhuma exigência de contrapartida na execução da grande obra. Assim podem ser resumidos os ecos do mito.
Em O Perígo da História Única, Adichie (2019) nos alerta que ao contar a história omitindo fatos, retirando personagens, negando protagonismo, silenciando alguns grupos, o dominador terá garantido outro resultado. Uma fantasia utópica que o coloca no centro das ações como figuras de proeminente inteligência superior e, portanto, com o direito legítimo de resolver os destinos dos dominados.
Sob a orientação da professora Sulian Vieira e em conjunto com o grupo de pesquisa Vocalidade & Cena, desde 2019 são desenvolvidas pesquisas que visam questionar o mito da história única sobre a construção da Capital e reconhecer o papel das mulheres nesse processo. A partir do teatro documentário e da autoficção realizamos performances narrativas que ressignificam memórias de mulheres candangas; a ponto de que essa experiência se transforme em um fio condutor para favorecer elementos para mudanças, mesmo que aparentemente sutis, sobre o imaginário social, bem como a combustão de afetos individuais por meio dos aspectos sensoriais e cognitivos que podem ser gerados internamente por meio da experiência teatral.
Nesse sentido, após seis anos de pesquisas, entre mestrado e agora no doutorado, entendo que, do mesmo modo, no caso da construção e consolidação de Brasília e do DF a história única narrada do ponto de vista do dominador – o homem branco, rico, hétero – também favorece a criação e perpetuação de mitos, ao mesmo tempo que inviabiliza o protagonismo de negros e mulheres. Neste caso se trata de proposital omissão de cunho político-ideológico, que delimita os excluídos e marginalizados – negros e mulheres – a partir da lógica de submissão e dominação branca e patriarcal, tirando destes grupos as suas subjetividades e direitos concretos.
Vale aqui ressaltar que quando falamos do silenciamento histórico da presença feminina, não podemos nos apartar das discussões sobre o racismo que atravessa as relações mesmo entre pessoas do mesmo gênero. Apesar de reconhecer que o gênero funciona para nós mulheres como uma força estruturalmente marginalizante que nos empurra para espaços desvantajosos na estrutura e organização da sociedade, as questões de racialidade favorecem, como lugar de privilégio, a branquitude (BENTO, 2000), as mulheres identificadas como brancas. A racialidade as coloca de volta para o espaço de privilégio, para o centro das relações de poder. Neste caso, classe e gênero são violentamente racializadas.
A história única e oficial da construção e consolidação de Brasília e do Distrito Federal se tornou uma história masculina, branca e rica que não reconheceu o processo e o protagonismo feminino e, mais especificamente, o das mulheres negras e pobres que contribuíram como parte ativa do trabalho menos valorizado, o trabalho doméstico.
Se por um lado temos na estrutura da história de Brasília o discurso da Capital da Esperança, do futuro e das oportunidades, por outro lado temos materializadas as condições precárias de vida das populações periféricas – grupos considerados “inferiores” a partir de categorias previamente criadas pelos homens brancos, governantes que detêm o poder político e econômico. Estes últimos arvoram ao direito de definir como a história de Brasília e dos grupos oprimidos que participaram da sua construção e consolidação pode e deve ser contada. Por este viés a história oficial vai desde a romantização dos processos de opressão e controle até a exclusão social como projeto de governo na higienização dos espaços elitizados da capital (NASCIMENTO, 2019).
Como resultado, de modo geral, verifica-se o apagamento histórico da participação dos povos negros na construção da Capital e, o silenciamento do protagonismo feminino em relação exponencialmente interseccional entre gênero, raça e classe social. Isso resulta diretamente na produção de diferentes discursos e diferentes realidades para as mulheres ricas e pobres, brancas e negras que se estabeleceram na capital, estendidos às suas respectivas descendentes.
Enquanto pesquisadoras e artistas temos nos ocupado de ir em busca de narradoras mulheres periféricas que não têm seus nomes reconhecidos nos anais dos registros da história oficial, buscando conhecer diferentes pontos de vista sobre a história da construção e consolidação de Brasília e do Distrito Federal e sobre suas existências durante esse período com o objetivo de de tensionar o mito da história oficial a partir do teatro documental. Deste modo é possível reconhecer na trajetória de vida destas mulheres, a matéria prima para realização de uma performance narrativa.
Fruto desta pesquisa, também foi está sendo ofertada uma disciplina no departamento de Artes Cênicas da Universidade de Brasília, ministrada por mim, com foco específico em teatro documentário, um gênero que utiliza documentos e a até a própria oralidade para contar histórias reais, investigando histórias de mulheres anônimas que também construíram Brasília, mas não tiveram o devido reconhecimento. Ao final do semestre os estudantes realizarão uma performance narrativa no 77º. Festival Cometa Cenas, que acontece no departamento de Artes Cênicas da Universidade de Brasília gratuita e aberta ao público.
*Jemima Tavares de Medeiros é Doutoranda e Mestre em Artes Cênicas (UnB) e professora substituta CEN/UnB