INVESTIGAÇÃO

Serafim Jardim e a reabertura do caso JK: a busca pela verdade – Por Arthur Serra

A reabertura do caso representa um passo na luta por memória, verdade e justiça. Resta saber se, desta vez, a verdade finalmente virá à tona

Serafim Jardim e Juscelino Kubitschek, em 1976.Créditos: Autor: Goes - Fonte: acervo pessoal de Serafim Jardim
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O governo federal decidiu reabrir as investigações sobre a morte do ex-presidente Juscelino Kubitschek, vítima de um controverso acidente de automóvel na Via Dutra, em 22 de agosto de 1976. A Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), vinculada ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), será responsável por conduzir a análise do caso. A reabertura surge para dar respostas a antigas suspeitas sobre as circunstâncias do falecimento do ex-presidente, amplamente questionadas ao longo das últimas décadas. A decisão representa uma oportunidade para revisar documentos, ouvir testemunhas e analisar possíveis novas evidências que possam lançar luz sobre o caso.

Uma figura muito requisitada pela imprensa mineira desde o anúncio da reabertura do caso foi Serafim Jardim, diretor do Museu Casa Juscelino Kubitschek, em Diamantina, cidade natal de JK. Serafim foi amigo de JK, sendo que, nos últimos 9 anos de vida do ex-presidente, esteve muito próximo, e se dedica, nos últimos 48 anos, à preservação da memória do seu conterrâneo e amigo ilustre.

Desde os anos 1990 tem se empenhado para que as investigações sobre a morte do ex-presidente fossem revisadas. Em 1996, ele foi o responsável por solicitar a reabertura do inquérito sobre o caso, já naquela época apontando inconsistências na versão oficial do acidente. Contou com o apoio do advogado Paulo Castelo Branco, então diretor da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em Brasília, e do perito Alberto Carlos de Minas. O trio se autodenominava “os três mosqueteiros”, unidos na busca por justiça. Juntos, pressionaram as autoridades e conseguiram reabrir temporariamente as investigações, mesmo diante da resistência oficial da época.

Em um depoimento redigido para a imprensa intitulado “A morte - JK – Onde está a verdade?”, Serafim, com base no livro de sua autoria, “JK: Onde está a verdade?”, detalha uma série de elementos que reforçam as dúvidas sobre as circunstâncias do falecimento de Juscelino Kubitschek. Ele menciona um telefonema recebido no dia 7 de agosto de 1976, no qual foi informado erroneamente sobre a morte de JK, quase duas semanas antes do acidente. Para Serafim, esse episódio foi um “balão de ensaio”, uma forma de testar a reação pública antes da execução de um plano para eliminar Juscelino. Segundo ele, ao encontrar JK dias depois, ouviu do ex-presidente: “Pois é, estão querendo me matar, mas ainda não me mataram”. JK tinha absoluta consciência de que o referido boato representava uma ameaça à sua vida.

Outro ponto levantado por Serafim é a presença do médico Guilherme Romano, amigo de Golbery do Couto e Silva, no local do acidente. De acordo com ele, Romano se apropriou de documentos e pertences pessoais de JK logo após a colisão, incluindo sua maleta e um manuscrito de diário. Quatro dias depois, obteve uma procuração assinada pela viúva Sarah Kubitschek e por familiares, o que levanta ainda mais suspeitas sobre a real natureza do ocorrido. O médico tirou cópias do diário e entregou ao Serviço Nacional de Inteligência (SNI) e a Golbery.

Serafim também descreve o dia da morte de JK como repleto de inconsistências. Segundo ele, “o Opala em que JK viajava estava em boas condições, e seu motorista, Geraldo Ribeiro, era experiente e cuidadoso. No entanto, por razões inexplicáveis, o carro teria saído da pista, atravessado o canteiro central e colidido frontalmente com uma carreta. Para piorar, os pertences do ex-presidente foram rapidamente retirados do local, e as fotografias da cena do acidente nunca vieram a público”. Ele ainda ressalta: “A versão oficial tentou encerrar o caso rapidamente, mas os detalhes nunca fizeram sentido”.

Algumas testemunhas que viajavam no ônibus da Viação Cometa relataram ter visto um clarão antes do carro de Juscelino perder o controle. Vale destacar que a Comissão Municipal da Verdade de São Paulo trabalhou com a hipótese de um automóvel Caravan verde ter emparelhado com o Opala dirigido por Geraldo, e de onde teria saído o clarão, conforme informação à época de Valério Meinel do jornal O Estado de São Paulo, e que consta em documento da 29ª Reunião Ordinária da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Minas Gerais, em 1º de novembro de 2013.

Há também dúvidas em relação à perícia oficial feita na época. Os laudos periciais realizados em 1976 foram considerados imprecisos ou manipulados. Conforme Serafim destaca, “os peritos devem ter examinado outro motor, pois o número do motor do Opala em que viajava Geraldo Ribeiro e JK era diferente do apresentado no laudo”. Além disso, segundo ele, um fragmento metálico de 7mm foi encontrado no crânio do motorista Geraldo Ribeiro durante a exumação do corpo, em 1996, mas os peritos afirmaram que se tratava de um simples prego enferrujado de caixão.

Outro fator suspeito é a ausência de fotografias dos corpos no laudo oficial. Serafim menciona que os peritos declararam explicitamente terem recebido “ordem superior” para não anexar as imagens ao processo. Ora, tal ordem teria partido de militares da linha dura que não queriam uma investigação sobre a morte de Juscelino e Geraldo? “O processo de JK e Geraldo Ribeiro não tem uma fotografia sequer dos mortos”, denuncia Serafim. A falta de fotografias nos faz refletir sobre uma perícia fraudulenta, sem dados honestos e corretos, o que reforça as dúvidas sobre possíveis manipulações na cena do acidente.

Além dessas inconsistências, Serafim menciona um documento revelado pelo jornalista americano Jack Anderson, que publicou no The Washington Post uma carta de 28 de agosto de 1975 escrita pelo chileno Manuel Contreras, diretor da Direção de Inteligência Nacional (DINA) ao general João Figueiredo, então chefe do Serviço Nacional de Inteligência (SNI). Contreras alertava que a vitória de Jimmy Carter nas eleições dos Estados Unidos poderia fortalecer JK no Brasil e Orlando Letelier no Chile. Ambos foram assassinados pouco tempo depois, sendo Letelier vítima de um atentado a bomba em Washington, um crime pelo qual os responsáveis foram condenados.

O documento reforça a aliança entre órgãos de inteligência das ditaduras latino-americanas, resultando na Operação Condor, amplamente abordada pela historiografia em pesquisas, teses e dissertações.

No caso JK, o motorista do ônibus Josias Nunes de Oliveira, inicialmente apontado como culpado, foi inocentado pela Justiça, e análises periciais indicaram que a tinta encontrada no ônibus da Viação Cometa era da rodoviária de São Paulo, não do Opala, como alegado na versão oficial.

A tese defendida por Serafim Jardim é de que Juscelino Kubitschek foi assassinado pelos órgãos de repressão da ditadura militar. Ele aponta para o chamado “código 12”, um método utilizado pelo regime para eliminar opositores ameaçadores ao regime sem deixar rastros evidentes através de acidentes forjados, ou seja, eram assassinatos disfarçados com aparência de acidentes de automóveis. Esses “acidentes” geralmente envolviam manipulação de perícias e ocultação de provas. O caso da estilista Zuzu Angel, morta em condições semelhantes, é frequentemente citado como um paralelo.

A recente decisão do governo federal de reabrir o inquérito reaviva essa discussão e pode trazer novas evidências sobre um dos episódios mais controversos da história recente do Brasil. Para Serafim, a verdade sobre a morte de Juscelino não pode ser esquecida. Como afirmou a esposa do ex-presidente, Sarah Kubitschek, em entrevista ao Jornal do Brasil em agosto de 1986: “A verdade tem muita força. Ela surgirá um dia, até independente de mim! A única coisa que não podemos conter é a verdade”.

A reabertura do caso representa não apenas uma tentativa de esclarecer a morte de um dos maiores líderes políticos do país, mas também um passo na luta por memória, verdade e justiça. Resta saber se, desta vez, a verdade finalmente virá à tona.

*Arthur Serra é historiador, mestre em História pela PUC-SP, pesquisador que trata das áreas de História Contemporânea, América Latina e Brasil. É também membro do Centro de Estudos de História da América Latina (CEHAL).

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum.

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