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Padre Marcelo Rossi e Frei Gilson: Do programa do Gugu ao algoritmo – Por Gines Salas

E também da despolitização ao radicalismo

Padre Marcelo Rossi e Frei Gilson.Créditos: Reprodução de vídeo de redes sociais e Instagram
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Muitos se surpreendem, mas o neopentecostalismo católico e o cristianismo da libertação nem sempre foram antagônicos. Digo mais: a Renovação Carismática Católica (RCC), apesar de seu fecundo conservadorismo moral, estava mais próxima dos progressistas do que das matizes conservadoras que teciam críticas – ainda que parciais – ao Concílio Vaticano II. E não é tão difícil de compreender. Tanto a RCC quanto o cristianismo da libertação são “filhos” da Igreja que se abriu para o mundo moderno. Tal proximidade pode ser exemplificada pelo livro escrito por d. Hélder Câmara juntamente com o cardeal belga Léon-Joseph Suenens – histórico entusiasta da RCC. Publicado em 1979, "Renovação no Espírito e Serviço ao Homem" aborda a convergência entre as dimensões carismática e libertadora.

O distanciamento do movimento carismático é um processo que se deu a partir da década de 1980: ao passo que o progressismo latino-americano e seus expoentes eram reprimidos pelo pontificado neoconservador de João Paulo II – um dos mais leais colaboradores da CIA –, a RCC se afastava. Em 1982, pe. Caetano Minette de Tilesse publica o livro “A Teologia da Libertação à Luz da Renovação Carismática”, com críticas profundas à corrente até então extremamente popular no Brasil. A obra foi enviada aos bispos pela comissão nacional da RCC. Moralmente conservador, o movimento passa a aderir a um discurso apolítico, antagonizando com o difundido pelas CEBs e pelas pastorais sociais. A relação, que era de proximidade, passou a ser de disputa.

No decorrer dos anos, o progressismo católico foi perdendo a batalha: ao passo que os carismáticos conquistavam a simpatia da Santa Sé, esta última estrangulava o cristianismo da libertação por meio de inúmeras medidas, dentre as principais a punição de religiosos, intelectuais e a nomeação de bispos conservadores. D. Paulo Evaristo Arns, por exemplo, cardeal-arcebispo da maior cidade do Hemisfério Sul, viu o seu poder ser dilapidado: no ano de 1989, foram criadas as dioceses de Santo Amaro, Campo Limpo, São Miguel Paulista e Osasco. Dessa forma, João Paulo II tirava as periferias da Grande São Paulo da influência progressista de Arns, responsável pelo crime imperdoável e herético de usar a estrutura da arquidiocese para defender os direitos humanos e denunciar os crimes da ditadura militar (tsc).

Chegamos a Santo Amaro…

Na década de 1990, em pleno avanço das denominações evangélicas, surgiu um padre muito popular oriundo da recém-criada diocese de Santo Amaro, frequentador dos programas de auditório mais assistidos do país. Um padre que representou uma “arma” contra a perda de fiéis e um retrocesso para o ideal de sacerdote ao recuperar elementos que haviam sido consideravelmente superados: se apresentava como aspirante a santo, fora do mundo, do pecado, do tempo, da história. Esse padre é dono da maior audiência da história do rádio e do disco brasileiro mais vendido de todos os tempos, com 3,3 milhões de cópias. No Brasil, a década de 1990 foi a década do Gugu Liberato, do Fausto Silva, dos Mamonas Assassinas, do tetra e do Ayrton Senna, mas também do pe. Marcelo Rossi, o padre animador de auditório.

O surgimento do pe. Marcelo foi um divisor de águas na Igreja brasileira e representou a conquista da hegemonia absoluta da RCC no meio católico. Na diocese de Santo Amaro, foi construído um santuário que recebe caravanas de todos os cantos do país, em missas televisionadas que contam com a presença do bispo diocesano como um coadjuvante no altar. Todo esse sucesso e exposição foi fruto de investimento, que trouxe amplo retorno para a diocese de Santo Amaro.

O surgimento de pe. Marcelo Rossi abriu portas para outros artistas e para as mídias católicas. Representou também um enfraquecimento da CNBB, outrora uma das conferências episcopais mais influentes do mundo. Uma das principais responsáveis pelo desgaste da ditadura militar, a CNBB perdeu poder, sendo ofuscada por religiosos midiáticos e por veículos católicos de comunicação, frequentemente contrários ao que era orientado pela conferência.

Radicalização conservadora

Outrora infantilizada e despolitizante, a RCC se transformou de modo paulatino. Ao longo da carreira, pe. Marcelo, apesar de seu pretenso conservadorismo moral, habitualmente sempre se negou a falar de política. Essa postura pode revelar uma limitação do religioso, mas também uma tática visando a não se desgastar: o Partido dos Trabalhadores (PT), fundado em 1980, era uma força política popular e estreitamente ligado aos setores progressistas da Igreja.

A eleição de candidatos vinculados ao movimento carismático, geralmente vinculados à centro-direita e a ascensão do antipetismo nas últimas décadas mudou esse cenário. Esse processo também foi acompanhado pelo “entrismo” praticado por religiosos conservadores, que pela lógica não teriam qualquer simpatia pela RCC, mas que ganharam palco e espaço na Canção Nova, por exemplo. O mais emblemático desses personagens é pe. Paulo Ricardo de Azevedo Jr., autor da célebre frase "a Igreja precisa de mais excomunhões".

Concomitantemente, os pontificados de João Paulo II e Bento XVI frutificaram movimentos católicos cada vez mais conservadores e antimodernos, que recuperaram práticas que tinham ficado no passado – com ênfase no anticomunismo pré-Vaticano II, o que os aproximou da extrema direita global. Muito se fala da ascensão da extrema direita brasileira, geralmente atrelada ao avanço dos evangélicos. Por vezes, no entanto, é minimizado ou até mesmo ignorado o papel dos católicos nesse processo. Saibam: não faltou líder de grupo de oração em porta de quartel no final de 2022…

O religioso influencer

E aqui chegamos ao frei Gilson, carmelita e músico católico também pertencente à diocese de Santo Amaro, que faz multidões acordarem de madrugada para assistirem às suas lives. Frei Gilson é essa batida de liquidificador que une o anticomunismo olavético e a linguagem simples e infantilizante da RCC. É a versão do pe. Marcelo modernizada, ultrapopular como a primeira, mas instagramável como o momento histórico pede e radicalmente conservador politicamente.

Frei Gilson é a versão do pe. Marcelo que não teme se posicionar e por isso se junta ao Brasil Paralelo, ora em Brasília contra o “flagelo do comunismo”, reduz as mulheres a servas dos homens, diminui casais LGBTQIAPN+ que não podem se reproduzir. E só não sabemos mais pelo fato de quase 2 mil vídeos terem sido removidos do canal do YouTube. Trata-se do religioso perfeito para o Brasil do algoritmo e da barbárie. Fruto de um projeto idealizado por João Paulo II e Bento XVI, que provocaram a putrefação do progressismo católico latino-americano.

*Gines Salas é professor da Educação Básica e mestre em História pela Unifesp, com pesquisas voltadas ao progressismo e conservadorismo católico e a relação Igreja e Estado no Brasil.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.

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