Uma das mostras de cinema mais tradicionais do Brasil, o É Tudo Verdade completa 30 anos em 2025. Com exibições entre os dias 3 e 13 de abril, o festival internacional de documentários leva em seu próprio nome uma provocação. Em tempos nos quais se problematiza a fidelidade aos fatos até de obras ficcionais, as "baseadas em fatos" em especial, o nome enfatiza que mesmo o documentário não é a verdade, mas sim um recorte da mesma, permeado por subjetividades, informações e pontos de vista específicos. É, talvez, uma verdade específica.
Essa questão é levada ao extremo em "Sobre um Heroi", de Pior Winiewicz. Coprodução Dinamarca, Alemanha e Estados Unidos, o longa-metragem também provoca pelo título, uma vez que é tudo, menos um filme sobre um heroi - sequer é sobre um humano. E nele, nem tudo é verdade.
Filme de abertura da edição 2024 do International Documentary Film Festival Amsterdam (IDFA), "Sobre um Heroi" é um experimento sobre o uso de Inteligência Artificial nas artes. Começa com uma provocação do cineasta alemão Werner Herzog, sobre a possibilidade nula de um computador dirigir um filme melhor do que os dele. O teste é posto à prática: o cineasta de "Fitzcarraldo" permitiu que o diretor Piotr Winiewicz treinasse, com base na obra documental de Herzog, uma Inteligência Artificial para escrever o roteiro do filme. A IA foi carinhosamente apelidada de Kaspar, em referência a "O Enigma de Kaspar Hauser" (1974).
Usando a voz de Herzog, o documentário viaja para uma cidade industrial pacata, Getunkirchenburg, para investigar a morte de um operário. O título engana ao induzir o público a pensar de que se trata de um documentário social, sobre a vida de um homem comum e sobre a suspeita de sua morte. O roteiro da IA, produz, na verdade, um mockumentary, ao ponto de que não tarda para o público a questionar absolutamente tudo no filme. As falas, os personagens, os cenários, algo é real ali? E, aos poucos, conforme o filme cresce em seu delírio, nos questionamos até se o operário, de fato, existiu. Na verdade, sua própria suposta esposa questiona isso.
O que "Sobre um Heroi" está fazendo em um festival de documentários? O filme de Winiewicz é um documentário não sobre um operário, mas sim uma obra autorreferencial, sobre a própria experiência de fazer um filme com Inteligência Artificial, e levanta diversos questionamentos sobre as potencialidades dessa ferramenta. Nesse sentido, documenta esse processo, sem esclarecer o que é real, o que é inventado pela IA, o que não é.
"Sobre um Heroi" dialoga com a obra de David Cronenberg, na qual a relação humana com a tecnologia é sempre posta de maneira estranha e provocativa, de "Videodrome" ao seu mais recente “The Shrouds” (2024), ao ponto no qual o filme transita de um documentário sobre o assassinato de um operário ao retrato de uma mulher se masturbando com uma torradeira. A intersecção de "Sobre um Heroi" com os sonhos e o desprendimento com a lógica narrativa lembram desde o experimental "Holy Motors", de Leos Carax, até a filmografia do mestre David Lynch. Todas obras ficcionais, é claro.
Sem esclarecer o que é real ou não, o que é humano e o que é IA, o documentário com um falso documentário dentro, como uma matrioska, é uma experiência estética, no mínimo, peculiar, levantando diversas questões pertinentes. E, apesar de explorar as possibilidades da tecnologia, mostra que, dificilmente, a IA poderia substituir humanos na arte - ou, pelo menos, por enquanto.
É Tudo Verdade
Além de "Sobre um Heroi", o É Tudo Verdade exibe o clássico "Cabra Marcado Para Morrer", de Eduardo Coutinho, e produções recentes inéditas no Brasil, como o brasileiro "Hora do Recreio", de Lucia Murat, premiado no Festival de Berlim. A programação completa deve ser divulgada neste link.