OPINIÃO

Fake News ou mentira? Como a linguagem normaliza a manipulação política – Por Keffin Gracher

O termo “fake news” se popularizou como sinônimo de desinformação, mas carrega um peso muito menor do que a palavra que realmente o descreve: mentira

Créditos: Agência Brasil
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As palavras importam. Como nomeamos um fenômeno influencia diretamente a forma como ele é percebido. O termo “fake news” se popularizou como sinônimo de desinformação, mas carrega um peso muito menor do que a palavra que realmente o descreve: mentira. E isso não é um detalhe. Essa troca de termos não aconteceu por acaso. Substituir “mentira” por um termo mais brando foi um movimento estratégico, que ajudou a extrema direita norte americana a minimizar a gravidade de suas ações e a escapar do julgamento moral.

No Brasil, esse efeito é ainda mais forte. Grande parte da população não compreende a tradução do termo, o que distancia ainda mais “fake news” do significado real de mentira deliberada.

A manipulação da verdade não é novidade. Desde a Grécia Antiga, a retórica foi usada para convencer, independentemente da veracidade dos argumentos. Os sofistas dominavam essa arte, ensinando como tornar qualquer discurso persuasivo, mesmo sem compromisso com a verdade. Ao longo da história, esse mecanismo foi refinado e adotado por regimes totalitários do século XX.

Adolf Hitler, em Mein Kampf, descreveu a eficácia da “grande mentira” — uma mentira tão colossal que ninguém ousaria duvidar dela. Joseph Goebbels, ministro da Propaganda nazista, levou essa ideia ao extremo, aplicando o princípio de que uma mentira repetida “mil vezes” acaba sendo aceita como verdade. E funcionou. A propaganda nazista convenceu milhões de alemães de que os judeus eram responsáveis pela crise econômica, pela derrota na Primeira Guerra Mundial e pela suposta degradação moral e cultural da sociedade. Repetindo teorias conspiratórias e explorando estereótipos racistas, os nazistas construíram a imagem dos judeus como inimigos da Alemanha, alimentando ressentimentos sociais e justificando sua perseguição. Esse processo abriu caminho para a discriminação sistemática, a violência e, por fim, o Holocausto.

O que mudou de lá para cá? A estratégia permaneceu, só mudou a tecnologia.

Se na Alemanha nazista a propaganda associava os judeus à degradação da nação, hoje Donald Trump culpa imigrantes pelo declínio dos EUA. No Brasil, Jair Bolsonaro reviveu um velho truque da ditadura militar: transformar a esquerda e o “fantasma do comunismo” no grande inimigo. Mentiras sobre um governo de esquerda acabar com a propriedade privada, obrigar famílias a dividirem suas casas ou proibir cultos religiosos são apenas alguns dos discursos fabricados para gerar medo e controle. A história se mostra cíclica. Essas táticas não são novas, apenas foram reformuladas para se adaptarem ao nosso tempo.

Entretanto, os contextos históricos são diferentes. No regime nazista, a propaganda era centralizada e rigidamente controlada pelo Estado, sem espaço para dissidência. Hoje, a desinformação circula de forma descentralizada, impulsionada por redes sociais e amplificada por grupos políticos e influenciadores, sem uma fonte única de comando. Isso torna o combate à mentira ainda mais complexo, pois não há apenas um emissor de desinformação, mas um ecossistema onde diferentes atores operam em conjunto. Embora a imprensa livre e mecanismos democráticos existam, a confiança nessas instituições enfraquece quando são continuamente atacadas por mentiras e teorias da conspiração.

O diferencial da extrema direita contemporânea é o uso das redes sociais como principal ferramenta de disseminação. O que antes dependia de rádios, jornais e panfletos, hoje é impulsionado por algoritmos que priorizam o que gera engajamento. E sabe o que mais engaja? Conteúdo polêmico e emocional. Não importa se é mentira. O que importa é que viraliza.

Mas a desinformação não se restringe ao ambiente digital. A mídia tradicional, em diversos momentos, também contribuiu para a disseminação de inverdades. Durante a Guerra Fria, jornais e emissoras de TV ajudaram a alimentar o medo do comunismo, muitas vezes sem compromisso com a realidade. No Brasil, a imprensa teve um papel relevante na legitimação do golpe militar de 1964, ao reforçar a ideia de que havia uma ameaça comunista iminente. Mais recentemente, grandes veículos deram espaço a alegações infundadas sobre fraude eleitoral e desinformação sobre a pandemia. A mentira se espalha não apenas nas redes sociais, mas também quando a grande mídia reproduz afirmações sem contestação ou análise crítica.

E essas distorções não circulam sozinhas. São impulsionadas por redes organizadas, com robôs, influenciadores pagos e campanhas coordenadas que criam a sensação de que são consensuais. Quando milhares de pessoas repetem a mesma falsidade, ela passa a parecer real.

O funcionamento dessas plataformas potencializa um problema já conhecido: a criação de bolhas informacionais. Os usuários só consomem conteúdos que reforçam suas crenças, criando uma falsa sensação de consenso. Isso se conecta ao conceito de viés de confirmação: as pessoas buscam informações que reafirmem suas opiniões pré-existentes e ignoram ou rejeitam evidências contrárias.

E o que acontece quando ninguém mais é exposto ao contraditório? O radicalismo cresce. O diálogo desaparece. E a mentira se fortalece.

Outro elemento essencial dessa engrenagem é a recusa em admitir o erro.

Políticos que usam essa tática jamais reconhecem que mentiram, mesmo quando confrontados com evidências claras. Seus seguidores tendem a agir da mesma forma, pois admitir o erro significaria reconhecer que foram manipulados. Isso é explicado pela dissonância cognitiva — um conceito da psicologia que mostra como as pessoas preferem reafirmar suas crenças a admitir que foram enganadas.

E aqui entra um ponto crucial: o papel da linguagem nessa disputa.

Antonio Gramsci já alertava que o poder não se mantém apenas pela força, mas pelo controle da linguagem e da percepção da realidade. Quem controla o discurso molda a forma como a sociedade interpreta os fatos. Não por acaso, o termo “fake news” se tornou a palavra-chave para suavizar a percepção da mentira.

A regulação das redes sociais é um passo fundamental para enfrentar esse fenômeno. Mas não basta restringir a circulação de desinformação se continuarmos tratando a mentira com um nome mais brando. Essa regulação precisa incluir transparência nos algoritmos, pois hoje sistemas invisíveis determinam o que vemos e o que não vemos, sem qualquer fiscalização.

Mas essa batalha não se limita aos governos e às plataformas digitais. Cada um de nós tem um papel nisso.

Precisamos adotar uma postura crítica ao consumir informações:

Verifique fontes.
Questione conteúdos sensacionalistas.
Evite compartilhar notícias sem confirmação.
Exija transparência das plataformas.

Quando a verdade perde força, a democracia desmorona. A história já mostrou o que acontece quando a mentira se torna regra. Cabe a nós impedir que isso se repita.

*Keffin Gracher é jornalista e cientista social. Coordena projetos de comunicação digital, com foco em governos e campanhas eleitorais. No governo da presidenta Dilma Rousseff, foi diretor de Internet, responsável pela presença digital do Governo Federal

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum 

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