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Estética da aparência, aparência de substância: beleza, estética e crítica do filme “A Substância”

A denúncia da obsessão por beleza jovial na indústria cultural americana que transforma mulheres de meia idade em meros produtos descartáveis

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Segundo a Anvisa (“Relatório Denúncias em Serviços de Interesse para a Saúde” – primeiro semestre de 2016, que reúne cumulativamente as denúncias recebidas entre os dias 10/03/2015 e 30/06/2016), das 409 denúncias recebidas sobre serviços de interesse para a saúde, 232 foram sobre serviços de estética e embelezamento. Dali em diante, a demanda por procedimentos de beleza, cuidado e rejuvenescimento, só aumentaram, mantendo os serviços de beleza e estética, uma margem de 60 % das denúncias na Anvisa. 

Nesse quadro crescente, inclusive, com número de óbitos em alta, em função da falta de preparos técnico-profissionais de alguns esteticistas e adequações médico-sanitárias de algumas clínicas de Estética, a luz do sucesso do filme “A Substância” (EUA/2004, diretora Coralie Fargeat), protagonizado pela sexagenária Demi Moore, é mister refletir sobre uma epidemia de narcisismo, catapultado por padrões de beleza artificial, alardeado pela mídia tradicional e digital, que faz com que a busca pelo belo banalizado e a juventude eterna, por vezes, traga uma morte rápida e indigna. 

O filme, em questão, denuncia a obsessão por beleza jovial e sorridente na indústria cultural americana que transforma mulheres de meia idade em meros produtos descartáveis irrecicláveis. O caso limite vivido pela apresentadora Elizabeth é utilizado como metonímia do que acontece com as mulheres em geral, em um contexto em que são bombardeadas com novos produtos e procedimentos estéticos que prometem o milagre de parar o tempo e, em alguns, casos, até mesmo a vida, devido aos riscos de efeitos colaterais, amiúde, imprevisíveis. Cada corpo é único em sua beleza e também em seu metabolismo, podendo manifestar intolerâncias alergênicas a determinados tipos de substâncias incutidas, como silicones, botoxs, testosteronas, ativos lipódicos e ácidos hialurônicos, por exemplo. 

No filme, a substância ativadora da eternidade miraculosa tenta preencher o vazio de pessoas sem “substância”, no sentido cultural e espiritual. Porém, a busca por força e beleza física (aparente) traz efeitos colaterais, no caso: a saturação de corrimentos, sangues, mucos, gosmas e pus, que apontam, metaforicamente, para o atual contexto da sociedade e amor líquido-moderno de Baumann, que nos orienta para vidas fugidias, fugazes e voláteis, porque com a modernidade “tudo o que é sólido, se desmancha no ar”, como já vaticinava Marx. O caráter efémero do culto à personalidade é bem expresso na cena de remoção do outdoor e do quadro de Elizabeth para dar lugar a nova divã, demonstrando o sentido de "destruição criadora" do capitalismo que arterealiza o mercado e torna a economia, criativa.

Na narrativa, há um jogo especular lacaniano de três camadas que é o da realidade (impossível), do imaginário (real do sujeito) e do simbólico (linguagem), que é representado, respectivamente, por Elizabeth Sparkle (Demi Moore), por Sue (Margaret Qualley) e pelo encontro semiótico entre as duas, que se dá, em um cômodo secreto atrás do banheiro, ou seja, em uma camada mais abissal do inconsciente coletivo, que a relação narcísica do espelho da figura real (Elizabeth) e sua representação imaginária (Sue) não mostra. Através de uma perspectiva dialética (tese mulher na terceira idade + antítese mulher jovem = síntese mulher-monstro criando uma simbiose mutacional entre elas), é feita uma crítica, nos moldes frankfurtianos, à sociedade do consumo conspícuo, catalisada por obsolescências programadas ou aparentes, e suas preferências por produtos artificiais e transgênicos, cujos impactos à saúde e ao meio ambiente são nocivos.

Os corpos estranhos que as pessoas inoculam na sua biota, além de causar dependência química e/ou psicológica, apesar de não serem a fonte infinita da juventude, certamente terão um período dd decomposição mais lento que a matéria orgânica humana, propriamente. O rejeito final dessa mineração corporal em sua odisseia pela soma do “admirável mundo novo” seria a gosma rastejante que restou do semblante adulterado da mulher monstrificada em cima da Calçada da Fama em Los Angeles, que, no final das contas, se tornou o cemitério das estrelas, que depois de serem cultuadas como divindades do céu, acabam pisoteadas no chão pelos habitantes e turistas porcos da cidade, cujos lixos e sujeiras são limpas pelos funcionários da limpeza urbana. A relação com a atração maior do que pela arte, pelo sensacionalismo obsceno dos circos dos horrores com que certos portais de paparazzi na internet alardeiam a decadência física e moral das celebridades é evidente, mormente, no gran final do filme, no que aponta para a ambiguidade da figura fanática e fundamentalista do fã, que é sempre um hater em potencial.

Um aspecto interessante da película de Fargeat é justamente o do conflito de geração entre novo e o velho, matriz e filial, expresso através dos hábitos de vida apolínicos de Sue (anorexia nervosa) e o baconiano de Elizabeth (compulsão alimentar), no que aponta para o efeito rebote e sanfona de dietas radicais. A ênfase ao tema da violência contra o idoso e o etarismo, de maneira geral, que impossibilita os mais jovens valorizarem o legado dos idosos, negando-se com isso, a própria vida, vez que eles são as origens do que será o futuro, devendo haver maior escuta e “equilíbrio” na troca de conhecimentos pelas diferentes idades e suas respectivas belezas. 

Tomando as duas personagens como alterIDADE uma da outra, ou seja, "uma só pessoa", o filme cria um objeto demonstrável para a noção kármica de responsividade biomédica com o próprio corpo, que tende a cobrar pelos excessos da juventude com doenças, mesmo que os sambistas sigam cantando: "Bebo sim, estou vivendo, tem gente que não bebe e está morrendo". Nesse sentido, o filme aponta para a necessidade de resignação das diferentes camadas de idades e memórias temporais de um mesmo indivíduo, em que a noção de envelhecimento, como sinônimo de adoecimento e demência, deve ser interseccionada com a de ancestralidade, como sinônimo de saúde e sabedoria.

Há um sentido também ecológico na alegoria que o filme faz dessa ausência de diálogo intergeracional entre a analógica Beth (mãe) e a digital Sue (filha), que só concordam na busca obsessiva por beleza através de atividades aeróbicas dançantes, que, com moderação, de fato, é sempre recomendado. O desalinhamento total dos recursos naturais é expresso pela forma como a jovem replicada, a apresentadora Sue, pilha e drena as energias vitais da velha matriz, Elizabeth Sparkle, para dar sobrevida cada vez duradoura, mesmo que não sustentável, à sua condição fabulística de um avatar com filtros de Instagram. Sue, essa quase boneca inflável, além de retrato da gamificada geração Z+, avessa ao contato presencial, é uma personificação também do ideal de perfeição que o homem (mulher) projetou ao criar as máquinas criaturas, em nome da ciência sem bioética. Enquanto melhor versão de si mesma, essa Alexa sem caráter quer, na verdade, apesar de incapaz de romper com sua condição pré-edipiana, quer superar o sucesso de sua "mãe" Elizabeth no programa de fitness na TV. Programa que ela mantinha até ser aposentada compulsoriamente, por excesso de idade, pelo seu diretor artístico da emissora, cujo nome é Harvey (interpretado por Dennis Quaid). Homem esse que personifica a figura do assediador de celebridades homônimo, cujo sobrenome é justamente Weinstein, produtor hollywoodiano que se tornou alvo fundante do movimento feminista Me Too.

É retoricamente estratégico a opção do roteiro desse suspense/drama em fazer uso citacional de cenas que remetem a diversas obras do gênero como Um Drink no Inferno, Irreversível, Réquiem para um Sonho, Quero ser John Malcovich, A Adaptação, O Outro, Quarto de Jack e os clássicos Citizen Kane, Psicose e o Homem Elefante. Talvez, seja essa uma forma de permitir uma maior densidade subcutânea para o horror no filme que, mediante o intertexto, aponta para inúmeras camadas de interpretação e pesquisa. Uma delas é da metalinguagem do clichê da relação da diretora e atriz no processo e produto da produção fílmica, respectivamente, em que o academicismo ensismesmado daquela, é confrontado pelo empirismo voluntarioso desta, que tende a predominar nas telas. Conflito egóico, tal qual a das duas personagens na exege da trama, gerando uma simbiose (mais parasitária do que protocooperativa), o que permite pensar também nos limites éticos da relação de dominação e sujeição em obras artísticas de criação coletiva como o cinema.

A mensagem principal do filme, a partir de um estoicismo schopenhaueriano, aponta para a razão prática, como caminho para felicidade, de se viver cada etapa biológica sem acelerá-la ou retardá-la artificialmente. Bem que o mensageiro da paz chamado Fred, antigo colega de escola de Elizabeth, que a elogia por sua beleza épica com espontaneidade (“Uau, uau, uau, uau”) e com sinceridade, dizendo que, apesar da idade, ela estava ainda tão bonita como nos tempos de juventude, convidando-a para sair em seguida. Infelizmente, sua síndrome sociofóbica a impediu, por sempre se comparar com sua alter-ego jovem Sue, que é a projeção do seu delírio por beleza eterna, não conseguindo interromper o fluxo da espiral do vício por sua outra imagem, a ideal, refletida no espelho. Mas, no final, o surrealismo da alienação supera todo sentido de realidade, quando transformado em o inseto de Kafka, a mulher perde sua mulherIDADE, ou seja, sua substantividade. Mas é claro que esse precipício tem por princípios a relutância charmosa das mulheres de se evadirem de comemorar seus aniversários, para tentar com isso fazer com que mais um ano de envelhecimento lhes fujam dos poros.

Em prol de ouvir o grito rouco das mulheres que se permitiram ficar reféns da vaidade pessoal desvalorizando suas belezas ocultas e iniciáticas do seu sagrado feminino, ou serem exigidas uma aparência extraordinária e sobre-humana, que, por vezes, ultrapassam a condição salutar para patológica, por transformá-las em mero objeto de consumo plástico, ao ponto de comprometer sua saúde para vender beleza... E, sobretudo, para que não venham morrer física ou psicologicamente em razão dos traumas e sequelas de procedimentos estéticos malsucedidos, a Anvisa publicou a Nota Técnica 02/2024/SEI/GGTES/DIRE3/ANVISA, que traz orientações sobre os serviços de estética e embelezamento e cujos objetivos principais são: 

* Orientar os profissionais de vigilância sanitária sobre o que verificar nas inspeções e fiscalizações sanitárias, para garantir a segurança e?a?qualidade dos produtos e serviços oferecidos nesses estabelecimentos. 

* Orientar os profissionais da área sobre a conformidade dos produtos utilizados e dos serviços prestados, em concordância com as normas sanitárias vigentes.? 

Por meio desse escrutínio recomendativo básico, pelo menos, pode se ter mais probabilidade, que, após a tomada de decisão feminina, no tocante a intervenções invasivas ou não no seu corpo para ficar mais bonita, ele será respeitado com propriedade, haja vista, que os serviços e ambientes de estética e beleza seguiram padrões de fiscalização certificados pela própria Anvisa. Os corpos das mulheres que são biopolíticos, por estarem sujeitos às regras das mulheres, também são geopolíticos, por estarem submetidos as leis do país e biogenéticos, consoante às leis da evolução, pois quando morre um ser feminino, é também o porvir e embrião de uma vida que ainda nem nasceu que morre. Cuidemos das únicas matrizes de todos nós! Viva as mulheres e a beleza feminina em todas as suas idades!

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.

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