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Quem são as pessoas necessárias à universidade pública? – Lincoln Tavares Silva

Garantir condições dignas de assistência e permanência estudantil não redunda em assistencialismo, mas em redução das desigualdades e reparação de injustiças históricas

O professor Lincoln Tavares Silva.Créditos: Arquivo pessoal
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Ao longo do ano de 2024, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro tem vivido tensões oriundas das contradições existentes entre os desígnios declarados no programa da gestão democraticamente eleita no ano passado e as práticas políticas verificadas de janeiro até o presente. Passados nove meses, elementos cruciais das políticas de ampliação de acolhimentos e pertencimentos têm sofrido retrações e involuções.

Há duas décadas e meia, um balizador assume centralidade na história da Uerj: o estabelecimento das políticas afirmativas. Essa conquista, aliada ao fato de oferecermos cursos noturnos voltados à população trabalhadora, fez e faz com que frequentemente sejamos reconhecidos como a mais popular universidade do país.

Nesse ambiente, causa indignação que membro integrante da gestão utilize a publicação de Revista do Departamento de Seleção Acadêmica como instrumento de propaganda contrária a mecanismos de promoção de permanência e de validação de acesso ao ambiente universitário. 

No artigo “Nenhuma pergunta a menos”, Gustavo Bernardo Krause (sobrenome omitido, pelo próprio, na publicação), demonstra contrariedade com o fato de o segmento estudantil, mais afetado por cortes de direitos que viabilizam sua permanência na universidade, ter entoado a consigna “Fora Gulnar”.

Porém, isso não é novidade na Uerj, em cujos corredores já ressoaram gritos de “Fora Fayal” e outros, em diferentes contextos. Isso nos tornou menos democráticos? Entendo que não! Ao contrário, talvez tenha posto algumas gestões a salvo do desvio entre objetivos declarados e efetivamente perseguidos.

Garantir condições dignas de assistência e permanência estudantil não redunda em assistencialismo, mas em redução das desigualdades e reparação de injustiças históricas. É curioso que muitos aclamem o fomento público para estudos no exterior e estranhem a concessão de incentivos igualmente públicos para garantia de acesso e permanência na Universidade. São vários e várias “Silvas”, e não “Krauses”.

Trato, sim, de reparação. O ingresso na universidade não torna os estudantes plenos de cidadania e capitais num passe de mágica. Para além da evasão verificada no período da pandemia, boa parte da ociosidade de vagas decorre das dificuldades enfrentadas pelos vulneráveis. Muitos sujeitos nem sequer acreditam poder chegar à universidade pública. Nosso papel, como educadores, é incentivá-los; como gestores, é viabilizar que ingressem, permaneçam e concluam essa etapa formativa.

Reconhecer a persistência da vulnerabilidade social em nosso país não basta. É preciso agir para superá-la e entender que todas estas PESSOAS são, sim, NECESSÁRIAS à universidade. Sua presença e participação nos enriquecem e nos fazem mais humanos. Sua chegada não é fruto de assistencialismo, mas de incorporação de patrimônio humano.

Quando se tenta reduzir a luta pela permanência estudantil aos embates políticos discentes ou, ainda, associá-la a influências da gestão anterior, sobressai a busca de um “inimigo” para, com isso, afastar a responsabilidade pelas ações que deram causa ao levante. Embora eu não queira taxar as pessoas como fascistas, este elemento se faz comumente presente nas ações daqueles que se utilizam deste ideário.

Mesmo que a resistência às cotas não tenha sido capaz de inviabilizar a política afirmativa e o discurso elitista tenha sido em muito refreado, não se pode dizer que ele tenha sido sepultado, porque seu tom parece ressurgir nas considerações que o professor Krause faz a respeito do papel da Universidade em relação às pessoas em condição de vulnerabilidade social.

De tempos em tempos, numa espécie de “Uerj do século XXI do atraso”, aquele grupo que não engoliu a política afirmativa como uma centralidade da vida universitária contemporânea retorna ao poder e, seletivamente, reafirma o espaço orçamentário reduzido, que a ela considera devido.

No caso da Uerj, não somente essa política afirmativa é afetada. A interrupção do pagamento de auxílios a servidores da Uerj e os atrasos no pagamento de trabalhadores terceirizados ilustram bem que a tensão vivida na Uerj, embora atinja mais firmemente os discentes, impacta toda a comunidade universitária.

Todos são afetados, mas uns sofrem mais do que outros. Mesmo alegando escassez orçamentária, a administração da qual faz parte política, funcional e afetivamente o professor Krause reajustou, em mil reais, bolsas de produtividade acadêmica dos professores procientistas. A medida seria louvável se não houvesse sido proposta num cenário de perdas de direitos por todos os segmentos. Está clara a ordem de prioridades da gestão da Uerj.

Prosseguindo em suas teses, o professor Krause também evoca o machismo que vitimaria nossa reitora eleita. É fato que vivemos numa sociedade machista. Por outro lado, não será possível proteger o exercício da liderança política por mulheres num contexto de ataque aos direitos de pessoas cotistas e vulneráveis em nossa Universidade. Afinal de contas, é conhecido o caráter interseccional das diversas formas de desigualdade.

Por fim, o professor Krause se esmera em tecer uma tese perigosíssima de desvio de função da universidade desde a implantação da política de cotas, mesmo se apresentando como seu defensor. O tempo de duração da política parece lhe causar incômodo, pois isso, no seu entendimento, está atrapalhando a realização de ensino e pesquisa que, segundo ele, são “a função da Universidade”.

Além de esquecer a extensão, elemento indissociável de interface com a realidade social, o professor Krause insiste em afastar a Uerj da promoção de justiça social. Por mais que existam aqueles que desejem se proteger em castelos feudais, não há como esconder os vários séculos de exploração e escravização de pessoas neste país. Essas pessoas têm cor, origem social e identidade étnico-racial.

A tese da melhoria universal na oferta da educação básica é muito bonita e útil para se justificar a provisoriedade das políticas de cotas, porém não dá conta dos desafios do presente - o que fazer com as gerações de pessoas alijadas do acesso às riquezas e direitos.

Diante dos séculos de escravização e de opressão, por que a pressa em limitar a política que valida a existência de sujeitos excluídos e em condição de vulnerabilidade que comprovem tal situação?

O professor Krause ignora a necessária longevidade da política de inclusão para que seus beneficiários possam se tornar atores capazes de engendrar transformações sociais de que precisamos como nação. Isso leva tempo, mas parece incomodar, desde sempre.

Aliás, por isso a Comissão de Validação da Autodeclaração é permanente: deverá existir enquanto a política de cotas estiver vigente. Ela foi implantada na gestão do professor Lodi por duas razões fundamentais. Primeiro, a partir da escuta dos movimentos sociais e dos estudiosos, os quais temiam que a ausência de um procedimento de heteroidentificação ampliasse o número de fraudes e, consequentemente, o descrédito em relação às cotas. Segundo, por imposição advinda da Lei Estadual nº 8.121/2018, que, ao prorrogar por dez anos a política afirmativa nas universidades, determinou que criassem comissões para verificar a regularidade dos direitos garantidos, especialmente para apurar desvios de finalidade, fraude e falsidade ideológica.

Saliente-se que a CPVA é uma Comissão plural, com representação dos segmentos universitários, possibilitando que aprendamos juntos a lidar com esta questão e afastando a hipótese de tribunal racial aventada por Krause.

Concordo com Krause que a universidade deve cuidar de outros aspectos que têm influenciado a oferta de cursos e suas “grades” curriculares. Nada obstante, o dito anacronismo é anterior à efetivação de políticas afirmativas. Para atualizá-los, será fundamental levar em conta o novo perfil de estudantes e trabalhadores no marco da política de cotas, considerando essa realidade para planejar o fazer universitário amparado no tripé ensino-pesquisa-extensão.

Neste contexto, devo afirmar que, se temos nos desviado de algo nessas últimas décadas, é do elitismo e da exclusão, porque estamos preocupados em colaborar verdadeiramente para a alteração dos quadros sociais de exclusão que nos cercam. Essa é Uerj que vimos tentando construir. Se são jargões para alguns, são princípios para nós: “Nada sobre nós, sem nós”, “Nenhum a menos”, “Ninguém fica para trás” e “A todo pé, a chance de uma meia”!

*Lincoln Tavares Silva é professor do Instituto de Geografia da Uerj, doutor em Educação pela USP, mestre em Educação pela Universidade Católica de Petrópolis, geógrafo pela UFRJ, com especialização em Políticas Territoriais (Uerj). É membro do Conselho Estadual de Educação do RJ.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.