O ano é 2024. Quase uma década depois das primeiras tentativas de se delinear uma resposta institucional, o Brasil retoma a construção de uma Política Nacional das Artes. Não como mera continuidade, mas como reconfiguração de um campo que há muito reivindica espaço, além de invenção, na arquitetura institucional das políticas públicas de Cultura do Brasil. No decreto que recria o Ministério da Cultura no terceiro governo do Presidente Lula, um marco histórico: de forma explícita, a Política Nacional das Artes é colocada como uma responsabilidade do Estado. O país, no entanto, é outro e exige mais que a retomada de uma demanda, mas uma movida de sentido. A quem é endereçada uma política para as artes neste tempo? Responder a esta questão requer o imprescindível desfazimento de falsos paradigmas, entre eles, o antagonismo entre política cultural e política para as artes, uma aparente contradição.
Por anos, a ideia de uma política para as artes foi associada, não sem motivo, a uma elite, como se o interesse e, por consequência, o acesso à produção e à fruição das artes fossem reforço ao privilégio de poucos. Essa distorção criou, entre outras coisas, uma separação artificial entre arte e cultura, relegando, por vezes, à primeira, um interesse de partes, e, à segunda, um interesse expandido, mais perto do que poderíamos tratar aquilo que é de interesse de todos. Este falso dilema oculta, no entanto, o reconhecimento da própria arte e sua imensidão. Subtrai da vivência coletiva os mundos im(possíveis) em que se fazem existir as artes e as fabulações, experiências que multiplicam os possíveis das coisas, dos corpos, das linguagens. Sem as artes, não há essa agência - essa ofensiva sensível. As artes, em todas as suas dimensões, se contam e se fazem fundamentais à vida, o que torna imperativo a inversão do argumento.
Quando a ministra da Cultura, a artista Margareth Menezes, designa a Fundação Nacional de Artes para coordenar um grupo de trabalho para a construção da Política Nacional das Artes, juntamente com outras unidades do sistema MinC, a retomada se dá numa perspectiva inversa, integrativa e complementar. Uma política para as artes é justamente o que pode assegurar o direito de partes ao todo, como bem comum e coletivo. Uma política que contemple um sistema de proteção e garantias e se comprometa, em definitivo, com a reparação a populações historicamente marcadas pela usurpação e pela invisibilização das suas imensas contribuições. O que está em debate, portanto, são os termos dessa política. Uma política para as artes regenera, repara, fortalece o tecido cultural e a soberania do país, na sua potência diversa, exuberante e criativa em cada território do Brasil.
Em meio à crise democrática que culminou com o afastamento da presidenta Dilma Rousseff, sucessivos ciclos de governos institucionalizaram e estimularam o ataque às artes, aos artistas, às políticas públicas e às instituições. Os resquícios desse período são indiscutíveis na nossa experiência de Brasil e nos convocam a reposicionar o papel do artista dentro das políticas públicas. Durante muito tempo, as e os agentes artísticos – da criação, curadoria, gestão, produção, técnica – foram tratados como beneficiários dos investimentos públicos. Este é outro paradigma estigmatizante que fragiliza o campo e, principalmente, a população como signatária desse direito. A ideia de que artistas são os destinatários da política pública precisa ser substituída pela compreensão de que eles são o meio pelo qual o direito às artes e à cultura se realiza e se manifesta.
Assim como trabalhadoras e trabalhadores da saúde e educação são fundamentais nos sistemas públicos que garantem esses serviços e direitos à população, as e os agentes artísticos são parte de um sistema em que as políticas públicas para as artes devem contribuir para assegurar os direitos culturais. Uma política contemporânea opera também como espaço de mediação e confluência de múltiplas partes, reconhecendo, inclusive, a voz pública das instituições de arte e cultura e seus agentes.
Com estas torções do pensamento, entra em jogo não apenas uma política de fomento, mas a construção, em definitivo, de um ecossistema estruturante e duradouro para as artes. Nos últimos dois anos, com a recuperação do ambiente democrático, o país testemunhou um verdadeiro reflorestamento do campo cultural a partir de novos marcos legais, fruto de suas lutas históricas. Os marcos regulatórios do Sistema Nacional de Cultura e do Fomento à Cultura e a retomada da Política Nacional de Cultura Viva, além do avanço nos mecanismos de atualização e nacionalização da Lei Rouanet, fazem parte dessas conquistas. Também integram essa rede a reabertura da participação social, simbolizada pela 4ª Conferência Nacional de Cultura, em que a proposta de criação da Política Nacional das Artes, a PNA, foi priorizada, assim como já é realidade a Política Nacional Aldir Blanc, a PNAB, que garante o repasse anual de R$ 3 bilhões até 2027 para estados, Distrito Federal e municípios brasileiros.
Essa é outra virada importante: a ausência histórica de investimentos, em consequência da superconcentração nos centros econômicos do país, dá lugar a uma inédita distribuição de recursos. O que se aventa aqui é uma oportunidade ímpar para estruturar um sistema federativo de investimento à cultura, de forma articulada e estratégica, mas que também avance naquilo que é específico para as artes. A maior política cultural da história do Brasil, a PNAB, requer diretrizes e prioridades para o uso de seus recursos, de forma a refletir novos paradigmas e as urgências deste tempo. É neste contexto que a Política Nacional das Artes poderá contribuir com o ecossistema, criando sinergias entre estados, Distrito Federal, municípios e União e promovendo confluências entre políticas e programas já existentes, evitando ausências, sobreposições e sombreamentos.
Como primeiro marco público de formulação dessa política, foi realizado, em parceria com o Sesc São Paulo, o Seminário Internacional de Políticas para as Artes – Imaginando Margens. Inspirado na poética dos rios, ao longo de três dias (17 a 19 de setembro), o encontro procurou ouvir uma diversidade de agentes artísticos como fonte inicial no exercício coletivo de imaginar essa política. O que se almeja, neste futuro que virá, é uma política que ganhe o tamanho das artes brasileiras, provoque as necessárias confluências em contraposição a falsos dilemas que procuram reduzir a natureza inventiva, emancipatória e insurgente das artes brasileiras. Tomemos assento. A Política Nacional das Artes é para todo país.
*Maria Marighella é presidenta da Fundação Nacional de Artes.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.