Ao longo da história da educação, a concepção da infância passou por transformações profundas, refletindo mudanças sociais, econômicas e culturais. Antes da modernidade, as crianças eram vistas como mini-adultos, com responsabilidades precoces e acesso limitado à educação formal.
Com o surgimento da modernidade a partir do século XVII, emergiu uma visão humanitária da infância, enfatizando a necessidade de um ambiente próprio para o crescimento e aprendizado das crianças. Famílias burguesas começaram a investir na educação de seus filhos para prepará-los para um mundo que valorizava conhecimentos específicos e habilidades.
No século XVIII, educadores como Jean-Jacques Rousseau e Johann Heinrich Pestalozzi destacaram um desenvolvimento infantil saudável e gradual, promovendo métodos educacionais mais naturais e lúdicos.
O século XIX trouxe o movimento do jardim de infância, introduzindo um ambiente onde as crianças exploravam de forma criativa e estruturada, preparando-as não apenas para a escola primária, mas reconhecendo suas necessidades físicas, emocionais e intelectuais.
No século XX, avanços na psicologia infantil e nos direitos das crianças influenciaram métodos pedagógicos mais centrados, tornando a educação infantil uma prioridade em todo o mundo.
Assim, ao longo dos séculos, a evolução do conceito de infância na educação mostra uma transição significativa de uma visão utilitária para uma perspectiva centrada na criança, redefinindo a infância como um período crucial de desenvolvimento e descoberta para cada indivíduo e para a sociedade como um todo.
A obra "História Social da Criança e da Família", de Philippe Ariès, é uma espécie de estudo inaugural da infância, que é uma construção também sócio-histórica. Sua historiografia, que vai do século XII ao início do século XIX, nos mostra como o sentimento de infância e o sentimento de família são impactados pela vida escolarizada. Portanto, Ariès examina a evolução da concepção da infância ao longo dos séculos, desde a Idade Média até os tempos modernos. Ele mostra como as percepções, atitudes e práticas relacionadas à criança foram moldadas por fatores históricos, culturais e sociais.
Fica evidente na leitura da obra de Ariès que o conceito de criança surge socialmente quando há um espaço reservado para ela, a escola. Em "História Social da Criança e da Família", Ariès tem três setores fundamentais: 1 - a constituição do sentimento de infância desde o período medieval; 2 - a escola moderna como espaço de separação da criança e responsável pelo alargamento da infância; 3 - a organização da família burguesa como espaço de conservação da infância. Uma das principais contribuições de Ariès é a desconstrução da ideia de que a infância sempre foi vista como uma fase separada e protegida da vida adulta. Ele traz em sua pesquisa de análise iconográfica que, na Idade Média, por exemplo, as crianças eram consideradas como miniaturas de adultos. Somente a partir do século XVII é que a concepção da infância como uma fase distinta e importante começou a se desenvolver.
Ariès se dedica a fazer uma análise de um período histórico específico através da sua pesquisa iconográfica, mas não quer dizer que o que ele verifica nesse período que vai do século XII ao XVIII não tenha eventualmente aparecido em outros momentos históricos. Ele não tem a intenção de construir uma gênese, portanto, ele aponta elementos que explicam a constituição da infância e da família, e a relação de ambas com a escolarização neste período, do século XII ao XVIII. É importante pontuar isso para não parecer que a representação da criança não apareceu em outro momento da História. Por exemplo, na arte grega, na época helenística, ela foi representada de forma realista. O românico não traz traços muito específicos da infância nos moldes que apareciam na arte grega, já os homens do século X e XI não se detinham diante da imagem da infância. Então, podemos dizer que na Idade Média há um esvaziamento da representação desta infância, lembrando que o trabalho de análise de Ariès começa com obras do século XII, além disso, o trabalho dele é centralizado no Ocidente.
Hoje chegamos a um mundo onde reconhecemos a fragilidade da criança, seu processo de formação, que traz a necessidade de uma educação infantil especializada, e a necessidade contínua de proteção da criança. Mas percebam que houve um caminho até esse amadurecimento da compreensão da vulnerabilidade da criança. E as crianças não são todas iguais. Elas, assim como os adultos, carregam características próprias, como, por exemplo, a sua etnia. Em um mundo onde as discriminações acontecem, crianças de grupos étnicos específicos acabam sendo colocadas em uma situação de perigo. Quando falamos, por exemplo, sobre o antissemitismo, devemos levar em consideração a situação de fragilidade na qual ficam as crianças judias.
Um relatório recente destacou um crescimento alarmante do antissemitismo no mundo, evidenciado por um aumento significativo de incidentes violentos e discriminação contra judeus. Esse crescimento é perceptível em diversas regiões, como Europa e Estados Unidos, onde foram registrados ataques físicos, vandalismo em sinagogas e a proliferação de discursos de ódio nas redes sociais. O relatório aponta para a normalização crescente de comportamentos antissemitas, alimentados por movimentos extremistas e pela disseminação de teorias conspiratórias. Diante desse cenário, torna-se cada vez mais urgente a implementação de medidas concretas para combater esse fenômeno e garantir a segurança e os direitos das comunidades judaicas.
Uma jovem judia de 12 anos foi vítima de um abuso em grupo nos arredores de Paris, França, após ser alvo de comentários antissemitas. O incidente ocorreu em Courbevoie, uma cidade próxima à capital francesa com uma comunidade judaica vibrante. Dois adolescentes de 13 anos foram formalmente acusados do crime, enfrentando também acusações por ameaças de morte, insultos preconceituosos e violência contra a vítima. Um terceiro suspeito, de 12 anos, está sob proteção de testemunhas e está sendo investigado por outras infrações pelas autoridades da promotoria pública de Nanterre, região situada a oeste de Paris. A situação gerou grande comoção no país, especialmente devido ao aumento dos episódios de antissemitismo desde o início dos conflitos na Faixa de Gaza.
De acordo com a promotoria pública de Nanterre, os crimes de violência e injúria tornam-se mais graves quando cometidos devido à religião da vítima. A organização francesa Women's Foundation, que defende os direitos das mulheres, enfatiza que, ao ocorrerem casos como a agressão entre crianças, toda a sociedade deve refletir sobre sua responsabilidade diante da violência, do antissemitismo e da misoginia presentes no país. Após o ataque do Hamas em Israel, o coletivo Nous Vivrons convocou uma manifestação em Paris para condenar o estupro antissemita de uma jovem. O presidente do Consistório Central, Elie Korchia, expressou solidariedade à vítima de fé judaica, condenando o crime sexual sórdido e repugnante que comove a todos profundamente.
No Brasil, estão se tornando cada vez mais comuns os casos de antissemitismo nas escolas. Em março deste ano, os noticiários foram tomados por manchetes de que, em uma escola em São Paulo, um grupo de alunos teria desenhado símbolos nazistas e escrito cânticos igualmente nazistas e antissemitas em cadernos para sinalizar a presença de um aluno judeu na turma. Esse tipo de evento certamente seria traumático para qualquer adulto judeu, mas causa danos ainda mais irreversíveis a uma criança que se vê vítima de racismo e discriminação em um ambiente que deveria ser seguro e acolhedor.
A presença do antissemitismo nas escolas não decorre unicamente do atual conflito no Oriente Médio, embora tenha sido amplamente aumentado por ele. Já antes dos nefastos atentados de 7 de outubro perpetrados pelo grupo terrorista Hamas, os noticiários brasileiros divulgavam incidentes violentos em escolas do país incitados por grupos neonazistas, que se dedicam a radicalizar jovens pela internet.
Em Aracruz (ES), um atirador de 16 anos matou quatro pessoas e feriu 12 ao atacar duas escolas no ano de 2022. No momento do crime, ele portava uma suástica no braço direito. A investigação do caso revelou ainda que o menor atirador recebia mensagens de conteúdo violento e extremista de um grupo neonazista que operava no aplicativo Telegram. Também de acordo com a mídia, o celular do menor infrator continha fotos dele com o livro “Minha Luta” de Adolf Hitler e outros materiais nazistas.
No mesmo sentido, em abril de 2023, a mídia noticiou que atos neonazistas e antissemitas em escolas tiveram alta de 760% entre 2019 e 2022, de acordo com o Observatório Judaico dos Direitos Humanos no Brasil.
Dessa forma, o antissemitismo não só está presente nas escolas brasileiras, como já gerou tragédias como assassinatos em massa por jovens radicalizados por extremistas. Isso demonstra que o antissemitismo na infância deve ser uma preocupação de todos, pois a violência e o discurso de ódio que o alimentam vitimam jovens de uma forma geral, não apenas crianças judias. O antissemitismo não é um problema judaico, mas um problema para a democracia e para a sociedade como um todo.
Além da questão social e de segurança pública, o antissemitismo também tem contornos jurídico-penais que podem afetar a vida de crianças e adolescentes. No Brasil, antissemitismo é crime de racismo, previsto na Lei 7.716/89. De acordo com a Lei, o crime de racismo consiste em praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Também incorre no crime aquele que fabrica, comercializa, distribui ou veicula símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizam a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo.
Como é sabido, menores de 18 anos são inimputáveis do ponto de vista penal. Isso significa que não podem ser punidos em caso de infrações? Certamente podem. Crianças e adolescentes não cometem crimes, mas cometem atos infracionais, sujeitos a punições que vão desde ações educativas e atividades comunitárias à internação do menor infrator, nos termos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Assim, ações que configuram racismo ou violência sujeitam os menores que as cometem às penalidades previstas em lei.
Dessa forma, o antissemitismo na infância gera danos a todos os envolvidos. Primeiramente aos alvos, vítimas dos ataques, que passam por um sofrimento imensurável e podem até mesmo ter suas vidas ceifadas muito precocemente e de forma abominável, como se vê nos casos aqui citados. Por outro lado, o antissemitismo gera estragos irreversíveis também aos menores infratores, que têm sua infância interrompida e o desenvolvimento totalmente maculado pela violência e pelo discurso de ódio, além de todas as consequências legais que derivam do cometimento de atos criminosos.
Assim, o antissemitismo na infância merece especial atenção de pais, educadores e da sociedade em geral de modo a evitar danos irreparáveis a todas as crianças e adolescentes envolvidos.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum
*Andrea Vainer é advogada criminalista, graduada em Direito pela Faculdade de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e mestre em direito (LLM) pela Universidade de Chicago (EUA), diretora jurídica da Confederação Israelita do Brasil (Conib).
**Ana Beatriz Prudente Alckmin é pedagoga graduada pela Universidade de São Paulo (USP), profunda conhecedora da obra de Philippe Ariès, pesquisadora no Instituto de Biociências da USP, presidente do “Zerah Platform: Direitos Humanos com Judeidade”, primeira judia negra brasileira a liderar um projeto educacional judaico na América Latina, ambientalista e expert em inteligência artificial.