LUTA PELO HOSPITAL SOROCABANA

Movimento popular vai à Justiça por participação da comunidade como fundamento do SUS

No contexto das lutas pelo Hospital Municipal Sorocabana, a interferência do poder executivo é mais um sinal de que o mínimo caráter deliberativo dos Conselhos Gestores pode incomodar, mas que também aviva a mobilização comunitária para além da institucionalidade

O Hospital Sorocabana.Créditos: Prefeitura de São Paulo/Divulgação
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Em terreno cedido pelo Estado no bairro paulistano da Lapa, o Hospital Geral Sorocabana foi inaugurado em 1954 para o atendimento demandado por trabalhadores e trabalhadoras da Ferrovia Sorocabana, sendo sua gestão exercida durante longos anos pela Associação Beneficente Sorocabana (ABS). Os serviços de saúde oferecidos pelo equipamento foram estendidos aos moradores do entorno, tornando-se referência regional. 

Como consequência de mudanças administrativas e de uma condução tanto desastrosa quanto corrupta na gestão privada de recursos do Sistema Único de Saúde (SUS), a ABS - já descaracterizada como associação de trabalhadores - levou o hospital à falência. Esse evento acionou uma cláusula contratual da época em que a associação havia recebido o terreno em doação, a qual impunha a conversão do equipamento em estabelecimento público estadual no caso de falência.

Fechado em 2010 como Hospital Geral, especialmente em razão de uma contenda judicial que se dava com relação ao passivo trabalhista da ABS, o sucateamento do equipamento era de interesse do mercado imobiliário, sedento por arrematar uma vasta e valorizada área da cidade. Contudo, graças a uma ampla mobilização social articulada com parlamentares, conquistou-se a retomada da prestação de serviços de saúde nos pisos inferiores do prédio - entregues à administração Municipal. 

Naquele momento, havia ficado nítida a perda iminente do hospital caso não houvesse pressão política por sua reforma e reabertura como equipamento integralmente municipal, com gestão pública direta e controle de Conselhos Gestores. Assim, o movimento popular de saúde que se expressa até hoje por meio do Fórum Popular de Saúde, do Comitê de Defesa do Hospital Sorocabana (composto pelo Pompéia Sem Medo, Lapa Sem Medo e outros) e da Assembleia Popular de Saúde da Zona Oeste (desdobramento desses movimentos para a região do Butantã, com a inclusão do Coletivo Butantã na Luta, desde 2019), tem mobilizado ações contínuas, além de demandas e intervenções em órgãos públicos - demarcando de maneira inequívoca sua posição política em relação a outros grupos, que contemporizaram a suposta impossibilidade de se reabrir o hospital em função da demanda trabalhista. 

Considerando que a militância em prol da saúde pública é bastante mobilizada pelo subfinanciamento crônico do Sistema Único de Saúde (SUS), pelas medidas de austeridade que o impactam e pelos processos de privatização observados há décadas, o movimento popular de saúde envolvido com a luta pelo Hospital Sorocabana, em específico, enfrentou as questões burocráticas que envolvem inclusive a doação do terreno onde está localizado o equipamento para o Município de São Paulo. 

Agora, corta para 2024: durante o mês de maio, foi conduzido o processo eleitoral para o Conselho Gestor do Hospital Sorocabana, com vitória da Chapa 1 (“Reformar o Hospital Sorocabana e Reconstruir o SUS”). Houve a interposição de um recurso pela Chapa 2 (encabeçada por um conselheiro municipal de saúde, à época). Afastando o fundamento das alegações tecidas, a comissão eleitoral encaminhou o tema ao Conselho Gestor da Supervisão Técnica de Saúde Lapa/Pinheiros, que criou uma comissão de averiguação para apreciar o tema. 

No deslinde das análises desta comissão, as alegações recursais são ampliadas para o debate sobre o próprio processo eleitoral, havendo um empate em seu parecer - razão pela qual o pleno do conselho gestor da supervisão já mencionada é avocado para decidir sobre o tema, deliberando no sentido da garantia da posse da Chapa 1, em 22 de julho. 

Mesmo após uma espera pela posse da chapa eleita pela comunidade, o processo parecia encerrado. Todavia, em 31 de julho, uma publicação oficial da Coordenadoria Regional de Saúde da Zona Oeste e da Secretaria Municipal de Saúde impugna a eleição, sem subsídio no processo narrado anteriormente. Junto da anulação do processo, novas eleições são convocadas. 

Nesse sentido, cabe a indagação sobre o motivo de tal interferência, dada a falta de competência dessas instâncias para tanto, uma vez que - pelo regulamento eleitoral aplicável - é o Conselho Municipal de Saúde a instância reconhecida como final para eventuais recursos. Há um detalhe importante, que não seria apenas um detalhe, em verdade: em face do empenho de aproximadamente 200 milhões de reais para a reforma do equipamento, torna-se notadamente um foco de interesse do atual prefeito no contexto da eleição municipal que se avizinha e da condução política desse processo de reforma - dado que o Comitê Gestor possui caráter deliberativo. 

Assim, nota-se a tentativa de inviabilizar um processo eleitoral legítimo, por meio de um novo processo que conta apenas com uma chapa inscrita - vez que a chapa vencedora reconhece tal medida como arbitrária. Então, nesse contexto, essa chapa provocou o poder judiciário. Sem entrar no necessário debate filosófico sobre o direito, sobre o Estado e suas instituições na constância da reprodução capitalista, entende-se que a luta por todas as vias à disposição justifica-se em face da notória ingerência quanto ao processo participativo popular. 

Aqui, o que se nota é o recrudescimento dos constrangimentos à participação popular quando menos cosmética, tendo em vista os contornos deliberativos já assinalados. Sabemos que a participação da comunidade constitui o SUS, o que não significa que esteja dada ou que seja observada na multiplicidade capilarizada de sua estrutura. É louvável que movimentos organizados reclamem tais prerrogativas, denunciando tanto o burocratismo quanto abusos - ainda que isso se caracterize como mais um ônus, em face das imposições da administração pública e da assimetria de ferramentas à disposição desses polos.

Para concluir, é ainda mais louvável que haja movimentos populares que se articulem independentemente de financiamentos por organizações internacionais liberais ou empresas que, por exemplo, dão a tais articulações outra dimensão (até mesmo por meio de sua profissionalização ou seu empresariamento, o que se insere na perspectiva de uma série de contradições). Nesse sentido, a luta pelo Hospital Sorocabana é exemplificativa da luta pela mobilização popular, particularmente impactada pela incorporação mais recente de tecnologias digitais nas políticas de saúde (em particular), cujo formato possui um caráter privatizante já bastante registrado pela literatura acadêmica. 

Então, apesar dos deslindes desse caso em específico, a própria manutenção da mobilização e da indignação em face de situações como as que tocam esse cenário são vitórias em termos de articulação e ampliação dos movimentos, para além da circunscrição institucional.

*Raquel Rachid é doutoranda em Mudança Social e Participação Política pela EACH-USP, pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), integrante do Laboratório de Políticas Públicas e Internet (Lapin) e da Assembleia Popular de Saúde da Zona Oeste (APSZO). 

*Silvia Tommasini é graduada em História e mestra em Geografia Histórica pela FFLCH-USP,  educadora aposentada e militante da Assembleia Popular de Saúde da Zona Oeste (APSZO), do Comitê de Defesa do Hospital Sorocabana e do coletivo Pompéia Sem Medo.