ANÁLISE

Periferia em disputa - eleição de 2024 promete novos projetos de país - Por Mateus Muradas

A novidade neste ano é que teremos três polos de disputa, a partir da ótica, exclusivamente, das periferias urbanas e rurais

Imagem Ilustrativa.Créditos: José Cruz/Agência Brasil
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O cenário eleitoral de 2024 está escancarando uma disputa ferrenha, entre projetos de cidades e de país que o povo irá escolher. Nada novo, em ano eleitoral. A novidade neste ano é que teremos três polos de disputa, a partir da ótica, exclusivamente, das periferias urbanas e rurais.

Alguns sociólogos, míopes por dados estatísticos, cravam que as periferias são neopentecostais e conservadoras. Este preconceito e visão limítrofe sobre periferia têm direcionado as campanhas eleitorais, inclusive da esquerda, para uma linguagem apelativa, recuada, apegada a valores tradicionais e religiosos, que não confrontam os chamados “valores da família”.

É fato que um dos polos da disputa é, sim, o “conservadorismo periférico”, e é nítida a presença das igrejas neopentecostais nas periferias. Mas afirmar que a linguagem para se comunicar com a periferia é somente ligada a valores morais tem sido um erro brutal da esquerda. Quer dizer que evangélicos não usam posto de saúde, não levam os filhos na creche e não usam transportes públicos?

Olhares mais atentos percebem que há outros dois projetos em disputa. As periferias são enormes, estamos falando da maioria da população. Lá está também a maioria dos eleitores, onde há de fato demandas urgentes e necessidades reais por políticas públicas.

No segundo polo da disputa está o chamado “empreendedorismo periférico”, que mistura conceitos do “faça você mesmo” com críticas legítimas ao papel do Estado no combate às desigualdades e na promoção de justiça social. Os grandes grupos financeiros e da mídia tradicional já perceberam que iniciativas de solidariedade espontânea são as pontas de lança para manutenção de um projeto neoliberal.

Estas iniciativas se tornaram terrenos de disputa sobre o que é “ação solidária”, sobre o papel do Estado e o discurso da solidariedade civil em oposição a um Estado ineficiente.

Neste polo temos uma proposta que isola as periferias do papel do Estado e do orçamento público, e que orienta que o único caminho é a livre iniciativa do sujeito periférico em buscar alianças com filantropos, como Luciano Huck, Véio da Havan, Pablo Marçal e outros dessa seara. É o grupo que defende “Governo para os ricos e Estado Mínimo para os pobres”.

Basta perceber que nos desastres ambientais como o de São Sebastião, como do Rio Grande do Sul e da Bahia surgem estes garotos propaganda da Rede Globo para dominar a narrativa política e impor o “empreendedorismo periférico” como solução.

Percebam que a intervenção destes grupos midiáticos dura algumas semanas, como uma catarse de rede social. Mas quem realmente entra em campo para apoiar as vítimas das catástrofes, de maneira permanente, é o Estado. Mas isso, “Hashtag, a Globo não mostra”.

Mas e o terceiro campo político?

As periferias sabem o valor da solidariedade, da união e da organização. É uma questão de vida ou morte, em alguns casos. O terceiro campo é o da “cidadania periférica”.

Este campo político já existe há muito tempo, mas ainda não se reconhece como movimento político. Seja nas periferias rurais, onde os assentamentos do MST sinalizam uma necessidade histórica por reforma agrária e terra para todos, seja nas periferias urbanas, onde os movimentos de moradia sinalizam a necessidade latente por reforma urbana e teto para todos morarem. A cola, a liga que faz estes movimentos existirem, é a solidariedade e a participação política.

Neste campo, o sujeito periférico reconhece o papel do Estado, e mais que isso, quer voz, quer vez, quer disputar o poder e afrontar o interesse dos poderosos. É o campo político que luta pela dignidade e por cidadania ativa, em que os mais pobres não são apenas garotos-propaganda da mídia ou gado de pastor oportunista. Mas são agentes propositores de um “Projeto de País”.

É o campo político que se propõe, efetivamente, a enfrentar o status quo, efetivar o poder popular e disputar com os poderosos um projeto de país, mais justo e inclusivo. É o projeto que fala claramente que não será o poder religioso, ou o poder empresarial que ditará os rumos da população, mas a própria voz das periferias que ecoará.

Quem está neste terceiro campo? Os movimentos de moradia, os mutirões de autogestão. Os pontos, ocupações e coletivos culturais, que em São Paulo criaram uma metodologia de política pública para aplicação em periferias urbanas, com a Lei de Fomento às Periferias.

E mais: as associações e entidades sociais, que são parceiras do Estado no combate à miséria extrema. As ocupações rurais, que experimentam as iniciativas de reforma agrária. Os conselheiros de saúde, que lutam pela qualificação do SUS. Os ambientalistas, que discutem a emergência climática e seu efeito nas periferias. Os círculos de educação popular, que têm criado métodos pedagógicos populares, universidades, cursinhos pré-vestibulares e escolas de cidadania. As cooperativas e bancos populares que têm sinalizado metodologias avançadas de microcrédito e financiamento periférico. As rádios e TVs comunitárias, os podcasts e canais de YouTube, antagônicos à mídia hegemônica. Os centros de pesquisa e observatórios de desigualdade social. É a luta por direitos humanos, do combate ao racismo, da afirmação das mulheres e contra todas as discriminações de gênero.

Tudo isso ecoa nas periferias! Este terceiro polo parece invisível, não conhece sua própria potência, mas está começando a ganhar forma na eleição de 2024. Definitivamente, este é o polo da esquerda, mas da “esquerda que não está morta” e que, na verdade, está nascendo.

Resta saber qual destes polos ganhará as eleições, em 2024, e sinalizará um novo projeto de país. Cabe a pergunta final: quando a esquerda institucional (quase morta) vai sinalizar qual destes projetos defenderá? A direita sabe bem qual polo irá atender.

*Mateus Muradas é poeta, integrante do Fórum Social da Zona Leste e conselheiro municipal de políticas urbanas.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.