Na última sexta-feira (21), o cidadão palestino Muslim M. A Abummar, acompanhado da mulher grávida de sete meses, um filho de 6 anos e a sogra foram abordados por agentes da Polícia Federal na porta do avião e informados de que não poderiam entrar no Brasil. Muslim foi questionado por um agente no interrogatório sobre “suas predileções políticas, se ele apoia e a resistência palestina à ocupação da Faixa de Gaza pelo Estado de Israel e suas motivações para viajar até o Brasil”, conforme consta nos autos.
Crítico da intervenção israelense na Faixa de Gaza que gerou uma crise humanitária sem precedentes e já matou mais de 35 mil palestinos, maioria crianças e mulheres, Muslim foi interrogado por agentes da PF sobre o suposto vínculo com a resistência palestina, ao desembarcar no Aeroporto de Guarulhos, em São Paulo, vindo da Malásia.
O palestino é um professor universitário, diretor do Centro de Pesquisa e Diálogo da Ásia, Oriente Médio, que tem sede em Kuala Lumpur, na Malásia. É reconhecido por seu trabalho por justiça e direitos humanos. Segundo o Instituto Brasil-Palestina, ele veio ao Brasil para visitar o irmão, que mora no país. No passaporte dele, inclusive, consta uma outra entrada no Brasil no ano passado.
Um Mandado de Segurança impetrado na tentativa de suspender a extradição chegou a ser parcialmente deferida pela Justiça até que a PF prestasse esclarecimentos sobre os motivos de impedir a entrada. Neste domingo (23), no entanto, a Justiça de São Paulo autorizou a extradição após manifestação da PF que afirmou, sobretudo, ter acolhido pedido feito pelo departamento norte-americano, através de sua embaixada.
Aos fatos...
A versão preconizada da PF para justificar a extradição é inconstitucional e fere a Soberania brasileira.
Filiação ao Hamas é crime?
A alegação é a de que Muslim seria “suspeito de terrorismo” por, supostamente, pertencer à resistência palestina e estar, também supostamente, vinculado ao partido político Hamas, na Faixa de Gaza. Ocorre que Muslim jamais participou, seja na formulação ou execução de atos terroristas, inclusive reside na Malásia, onde possui emprego, residência fixa e família constituída. Além disso, não é investigado ou procurado internacionalmente, incluindo Estados Unidos e Israel, países “temerosos” com sua estadia no Brasil e que acionaram da PF brasileira. A deportação apressada que o prejulgou não lhe permitiu o direito hábil de defesa, ao contrário, o condenou e à sua família que cometeu o “crime” de ser sua família, pois mesmo sem formulação para proibir a entrada dos seus entes, uma criança, uma grávida e uma idosa, estes foram defenestrados de volta pela frieza que a insensibilidade xenofóbica pode produzir.
O Brasil, a ONU e maioria dos países no mundo não consideram o Hamas terrorista. As entidades definidas como terroristas são determinadas pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas, órgão encarregado de velar pela paz e pela segurança internacionais. Portanto, atribuir impedimento para entrada no país por esta ilação, de suposto pertencimento ao Hamas, caso fosse provado, ainda assim não implicaria em um fato jurídico determinante.
O Hamas ser titulado como grupo terrorista pelos Estados Unidos não estende essa posição ao resto do mundo. A Polícia Federal aparenta andar em descompasso com as posições oficiais do Itamaraty e com o princípio constitucional da neutralidade ao assegurar que o Brasil deve pautar suas relações internacionais pela não intervenção nos assuntos internos de outros países, respeitando a autodeterminação dos povos, incluindo o da Palestina, além da defesa da paz, solução pacífica dos conflitos, independência nacional e prevalência dos direitos humanos.
Ter filho brasileiro é crime?
Outra alegação é a de que há suspeitas de que a esposa de Maslim tenha vindo ao Brasil para ter seu filho e alcançar a naturalização. Que, por isto, seria necessário impedir tal intuito. Esta posição institucional é flagrantemente uma violação dos direitos humanos, conforme previsto na Constituição Federal e em diversos tratados e convenções internacionais dos quais o Brasil é signatário. No arcabouço legal brasileiro não há qualquer menção quanto à proibição desta possibilidade e criminaliza-la é legislar à margem da ordem jurídica estabelecida pelo Estado Democrático de Direito.
O direito à saúde reprodutiva e à maternidade é garantido a todas as mulheres, independentemente de sua nacionalidade ou status migratório. Podemos citar diversos tratados e convenções que abarcam o direito de sua entrada que foi ceifado pela PF; Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (PIDCP), Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará), Convenção sobre os Direitos da Criança, além da própria Declaração Universal dos Direitos Humanos que, embora não seja um tratado vinculante, é uma recomendação que a Assembleia Geral das Nações Unidas faz aos seus membros.
Além disso, o Non-refoulement, ou não-repulsão, consagrado, inter alia, na Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados, é um princípio fundamental no direito internacional. Está presente em diversos tratados e convenções dos quais o Brasil é signatário e que referendam a tese de que as autoridades brasileiras não podem deportar a gestante apenas pelo fato de ela estar grávida e pretender dar à luz no país, sobretudo por se tratar de uma especulação aventada em meras hipóteses pelo relatório da PF.
Não coincidentemente, os EUA fundamentam este veto que proíbe a intenção de estrangeiros em ter filhos no seu território pelos motivos singulares deste país. Ao que parece, quando fez “Ctrl C”, “Ctrl V”, a PF se esqueceu que isto não existe em nosso ordenamento jurídico.
Para quê Leis?
A Constituição Federal brasileira assegura, em seus artigos 49 e 84, que o Congresso Nacional irá referendar tratados, convenções e atos internacionais incluindo os de cooperação na área de segurança que positivem ritos procedimentais, incluindo aeroportos, com vistas à segurança nacional. Nesse sentido, está em tramitação o Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 554/21 que contém o acordo entre Brasil e Israel sobre cooperação em segurança pública, prevenção e combate ao crime organizado. Fruto de acordo foi assinado em 2019 pelo então presidente Jair Bolsonaro. O PDL foi durante criticado por entidades e organizações de Direitos Humanos justamente por abrir precedentes para abusos e ilegalidades correlatas a que está em curso contra Muslim.
Se o PDL está em curso, portanto, não está em vigor. A questão é que o rito utilizado pela PF seguiu procedimentos manifestados no acordo, mas que não estão autorizados e positivados. Não obstante, os acordos existentes entre o Brasil e o governo norte-americano não asseguram, tampouco legitimam operações que se sobreponham à legislação e limites éticos necessários ao Estado Democrático de Direito.
Conforme preconizado na CF, artigo 22, item XV; “compete privativamente à União legislar sobre emigração e imigração, entrada, extradição e expulsão de estrangeiros”. Por que então estaria sendo aplicado regras estranhas ao arcabouço legal brasileiro, baseadas em legislação estrangeira, à revelia do referendo legislativo?
Quando observado que os argumentos manifestados nos autos pela PF não têm respaldo jurídico e associando ao questionamento que Muslim recebeu do agente brasileiro, durante interrogatório, sobre “suas predileções políticas, se ele apoia e a resistência palestina à ocupação da Faixa de Gaza pelo Estado de Israel e suas motivações para viajar até o Brasil”, como interpretar a determinação constitucional de seu artigo 5, item LII, garantindo que “não será concedida extradição de estrangeiro por crime político ou de opinião”? Fazer críticas ao visível e denunciado genocídio contra palestinos praticado pelas forças israelenses virou crime passível de extradição? Como a PF trataria o presidente Lula no lugar de Muslim?
A Lei de Migração (13.445/17), em seu artigo 45, item IX, reafirma que “ninguém será impedido de ingressar no país por motivo de raça, religião, nacionalidade, pertinência a grupo social ou opinião política”. Também no artigo 83, permite a extradição do imigrante em apenas duas circunstâncias: “quando cometer crime no território do estado que solicitar a sua extradição” e “quando estiver respondendo a processo investigatório ou tiver sido condenado em seu país de origem”. Ao que parece, a PF descumpriu e/ou omitiu muitos princípios supralegais.
Lei de Migração também trata, em seu artigo 45, quando prevê o impedimento de entrada, “após entrevista individual e mediante ato fundamentado”, a pessoa “que tenha o nome incluído em lista de restrições por ordem judicial ou por compromisso assumido pelo Brasil perante organismo internacional”. Então nos surge a relevante e fundamental questão: qual lista e qual acordo?
A supracitada lista é nada menos que a TSC (Terrorist Screening Center), que possui mais de 1 milhão de nomes, segundo American Civil Liberties Union (ACLU), entidade civil norte-americana ligada à defesa dos direitos e liberdades individuais. A lista é produzida pela polícia federal americana (FBI), que reúne as informações sobre os suspeitos de terrorismo. O TSC é questionando em todo o mundo por seu caráter discriminatório, generalizador e de juízo de valor. O Prêmio Nobel da Paz, Nelson Mandela, era um que figurava na lista, dentre outros.
O Brasil não adotou, ao menos oficialmente, uma política de adoção vinculante desta lista, mas começou a utilizá-la para barrar entradas de estrangeiros “suspeitos”, a exemplo do argentino Edgardo Ruben Assad, em abril, por este fazer parte do banco de dados do TSC sobre suspeita de pertencer ao Hezbollah.
Ainda com a Lei de Migração, seu artigo 81 manifesta que a “extradição é a medida de cooperação internacional entre o Estado brasileiro e outro Estado pela qual se concede ou solicita a entrega de pessoa sobre quem recaia condenação criminal definitiva ou para fins de instrução de processo penal em curso”, sendo assim, qual seria o crime ou processo penal em curso contra o palestino barrado? Mais adiante a Lei reitera os direitos constitucionais para estabelecer, no artigo 82, que “não se concederá a extradição quando o fato constituir crime político ou de opinião” e “o extraditando tiver de responder, no Estado requerente, perante tribunal ou juízo de exceção”. A PF vai responder se o que o “Estado requerente” faz já é o próprio juízo de exceção?
Subserviência é Lesa pátria
Em essência, a lesa pátria envolvem ações ou omissões que podem prejudicar gravemente nossa soberania. A Constituição Federal brasileira estabelece princípios fundamentais, como a dignidade da pessoa humana, autoridade legal e previsibilidades jurisdicionais. Assumir regramentos estrangeiros, sob influência de Nações alheias, que visam se sobrepor à legislação brasileira e ferem a ordem constitucional é muito grave e configura crime contra a pátria.
Não se trata de Muslim e seus familiares. Não se trata de defesa ideológica ou posições políticas no cenário geográfico internacional. Não se trata de defender “o indefensável” ou de enfraquecer uma força de segurança tão significativa e histórica quanto a Polícia Federal. Se trata da dignidade humana! Se trata da estabilidade e funcionamento das instituições! Se trata o exercício da liberdade e das garantias individuais! Se trata dos princípios fundamentais!
Hoje é com Muslim e família, amanhã será com qualquer um que ouse se opor àqueles capazes de impor seus tentáculos imperialistas para controlar as leis e consubstanciar regras ditatoriais. O governo brasileiro precisa ter uma posição! O Supremo precisa ter uma posição! Nós precisamos ter uma posição que não se distancie da revolta com esta desumanidade.
Algo precisa ser feito.
*Thiago Dhatt é assessor parlamentar e Antropólogo
**Este artigo não relfete, necessariamente, a opinião da Fórum