DEBATES

Arquivar para não retroceder! Mulheres contra o PL 1904! – Por Dandara Tonantzin

A célebre frase escrita por Simone de Beauvoir em 1949 se mostra, em 2024, no Brasil, mais pertinente do que nunca. Vimos o Congresso Nacional mais uma vez rifar essas vidas em 23 segundos

A deputada federal Dandara Tonantzin.Créditos: Assessoria de Comunicação
Por
Escrito en DEBATES el

“Nunca se esqueça que basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes. Você terá que manter-se vigilante durante toda a sua vida.”

Simone de Beauvoir

A célebre frase escrita por Simone de Beauvoir em 1949 se mostra, em 2024, no Brasil, mais pertinente do que nunca. Na última semana, vimos o Congresso Nacional mais uma vez rifar a vida das mulheres brasileiras em apenas 23 segundos, ao aprovar o regime de urgência do Projeto de Lei 1.904/2024, que visa equiparar o aborto realizado após a 22ª semana de gestação ao crime de homicídio. Diante da ameaça de um grave retrocesso nos direitos de meninas e mulheres, milhares de brasileiras se levantaram numa onda verde, que inundou as ruas do país em um clamor unificado pela preservação dos direitos reprodutivos.

No Brasil, o aborto é considerado crime, previsto nos artigos 124 a 126 do Código Penal de 1940, com apenas duas exceções: em caso de estupro e risco de vida para a mãe. Vale destacar que não é previsto um tempo máximo de gestação para que esses abortos possam ser realizados. Além disso, desde a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54 julgada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2012, a interrupção de gestações de fetos anencéfalos deixa de ser tipificada como aborto, portanto não é punível. No entanto, a legislação atual ainda impõe penas severas para quem realiza ou consente um aborto fora dessas exceções, variando de um a três anos de prisão para a gestante e de um a quatro anos para quem realiza o procedimento com o consentimento da gestante, e de três a dez anos para quem o faz sem consentimento.

É inconcebível que o legislador de 1940 tenha demonstrado mais sensibilidade ao tratar dos direitos de meninas e mulheres do que a Câmara dos Deputados em 2024. Oito décadas depois, ao invés de pautar e debater estratégias para garantir que meninas e mulheres estupradas tenham acesso ao procedimento de aborto seguro, estamos, na verdade, revitimizando e punindo as vítimas. Ao aprovar projetos que retrocedem nos direitos reprodutivos, o legislativo atual ignora os avanços necessários para proteger a saúde e a dignidade das mulheres brasileiras, perpetuando uma cultura de violência e desamparo.

O caso da menina de São Mateus, ocorrido em agosto de 2020, é um trágico exemplo das falhas do sistema de proteção nesses casos. Aos 10 anos, a menina engravidou após ser repetidamente abusada pelo tio desde os 6 anos de idade. A gravidez foi descoberta somente após ela adoecer e ser levada ao hospital, já com três meses de gestação. Após a prisão do agressor, a menina foi retirada de seu lar e colocada em um abrigo. Durante este período, ela e sua família foram submetidas a assédio e pressão por parte de grupos religiosos e políticos conservadores, que se opunham ao aborto legalmente permitido. A violação da privacidade da menina, com a divulgação de seus dados pessoais por ativistas contrários ao aborto, representa uma afronta ao Estatuto da Criança e do Adolescente. Para realizar o procedimento de interrupção da gravidez, foi necessário que ela viajasse para outro estado.

Esse triste caso evidencia que devemos traçar políticas públicas que olhem para frente e pensem na garantia dos direitos das mulheres. De acordo com dados do Ministério das Mulheres, entre 2012 e 2022, 247.280 meninas de 10 a 14 anos se tornaram mães no Brasil. Apesar de uma queda ao longo dos anos, o último período analisado ainda registrou mais de 14 mil gestações nessa faixa etária. Além disso, o 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública revelou que o país teve 73.024 estupros em 2022, sendo a maioria das vítimas meninas: de cada 10 casos, 7 foram cometidos contra crianças de até 13 anos. Isso significa que quatro ocorrências envolvendo menores nessa faixa etária são registradas por hora no Brasil, e duas das vítimas acabam engravidando como resultado desses crimes. Os dados também apontam que 57% das vítimas eram negras e que 68% dos estupros ocorreram dentro de casa, com a gravidade adicional de que em 64% dos casos, os autores eram familiares das vítimas. Esses números alarmantes evidenciam a urgência de políticas eficazes de proteção às meninas e mulheres, visando a prevenção da violência sexual e a garantia dos seus direitos reprodutivos. Esses números alarmantes evidenciam a urgência de políticas eficazes de proteção às meninas e mulheres, visando a prevenção da violência sexual e a garantia dos seus direitos reprodutivos. Por isso, repudio esse projeto e me posiciono pelo seu arquivamento. São esses os dados que deveriam chocar mais e mobilizar a sociedade. Quando uma menina se torna mãe, em um contexto de violência sexual, é sinal de que falhamos como Estado ao negar a ela a proteção para que sua infância seja plena de direitos e ao não a acolher de forma eficaz, efetiva e célere. Dessa forma, obrigá-la a manter a gestação, tornando a punição da vítima superior à punição do criminoso, é absolutamente desproporcional, desumano, revitimizador e violador da dignidade humana.

Além disso, é crucial a implementação de políticas de educação sexual nas escolas, que abordem de maneira abrangente e inclusiva temas como consentimento, prevenção de abusos e saúde sexual. Embora haja oposição da extrema direita a essas medidas, diversas evidências e estudos demonstram que a educação sexual nas escolas é a forma mais efetiva de prevenção, capacitando crianças e adolescentes a identificarem e lidarem com situações de risco de maneira informada e consciente.

Diante do cenário descrito, é profundamente preocupante ver a extrema direita ganhando espaço no debate dentro do Congresso Nacional, especialmente quando suas propostas ameaçam os direitos reprodutivos das mulheres. Este movimento não apenas polariza o ambiente político, mas também coloca em risco os avanços conquistados em direitos civis e sociais, delineando um futuro sombrio para a democracia e a inclusão social. 

É fundamental reconhecer que o Brasil é signatário de importantes tratados internacionais que visam assegurar os direitos das mulheres, como a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW) e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, conhecida como Convenção de Belém do Pará. Estes tratados, juntamente com outros como a Convenção sobre os Direitos Políticos da Mulher e a Convenção Internamericana sobre a concessão dos direitos civis da mulher, estabelecem um compromisso internacional em promover a igualdade de gênero e proteger as mulheres contra todas as formas de violência e discriminação. A discussão de políticas que visam punir e criminalizar mulheres, em vez de proteger seus direitos fundamentais à vida, à saúde e à dignidade, vai contra os princípios desses tratados e os compromissos assumidos pelo país. Portanto, é essencial que as políticas nacionais estejam alinhadas com os padrões internacionais de direitos humanos, garantindo que os direitos das mulheres sejam respeitados e promovidos em todos os níveis da sociedade.

*Dandara Tonantzin é deputada federal (PT-MG)

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.