“Nunca se esqueça que basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes. Você terá que manter-se vigilante durante toda a sua vida.”
Simone de Beauvoir
A célebre frase escrita por Simone de Beauvoir em 1949 se mostra, em 2024, no Brasil, mais pertinente do que nunca. Na última semana, vimos o Congresso Nacional mais uma vez rifar a vida das mulheres brasileiras em apenas 23 segundos, ao aprovar o regime de urgência do Projeto de Lei 1.904/2024, que visa equiparar o aborto realizado após a 22ª semana de gestação ao crime de homicídio. Diante da ameaça de um grave retrocesso nos direitos de meninas e mulheres, milhares de brasileiras se levantaram numa onda verde, que inundou as ruas do país em um clamor unificado pela preservação dos direitos reprodutivos.
No Brasil, o aborto é considerado crime, previsto nos artigos 124 a 126 do Código Penal de 1940, com apenas duas exceções: em caso de estupro e risco de vida para a mãe. Vale destacar que não é previsto um tempo máximo de gestação para que esses abortos possam ser realizados. Além disso, desde a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54 julgada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2012, a interrupção de gestações de fetos anencéfalos deixa de ser tipificada como aborto, portanto não é punível. No entanto, a legislação atual ainda impõe penas severas para quem realiza ou consente um aborto fora dessas exceções, variando de um a três anos de prisão para a gestante e de um a quatro anos para quem realiza o procedimento com o consentimento da gestante, e de três a dez anos para quem o faz sem consentimento.
É inconcebível que o legislador de 1940 tenha demonstrado mais sensibilidade ao tratar dos direitos de meninas e mulheres do que a Câmara dos Deputados em 2024. Oito décadas depois, ao invés de pautar e debater estratégias para garantir que meninas e mulheres estupradas tenham acesso ao procedimento de aborto seguro, estamos, na verdade, revitimizando e punindo as vítimas. Ao aprovar projetos que retrocedem nos direitos reprodutivos, o legislativo atual ignora os avanços necessários para proteger a saúde e a dignidade das mulheres brasileiras, perpetuando uma cultura de violência e desamparo.
O caso da menina de São Mateus, ocorrido em agosto de 2020, é um trágico exemplo das falhas do sistema de proteção nesses casos. Aos 10 anos, a menina engravidou após ser repetidamente abusada pelo tio desde os 6 anos de idade. A gravidez foi descoberta somente após ela adoecer e ser levada ao hospital, já com três meses de gestação. Após a prisão do agressor, a menina foi retirada de seu lar e colocada em um abrigo. Durante este período, ela e sua família foram submetidas a assédio e pressão por parte de grupos religiosos e políticos conservadores, que se opunham ao aborto legalmente permitido. A violação da privacidade da menina, com a divulgação de seus dados pessoais por ativistas contrários ao aborto, representa uma afronta ao Estatuto da Criança e do Adolescente. Para realizar o procedimento de interrupção da gravidez, foi necessário que ela viajasse para outro estado.
Esse triste caso evidencia que devemos traçar políticas públicas que olhem para frente e pensem na garantia dos direitos das mulheres. De acordo com dados do Ministério das Mulheres, entre 2012 e 2022, 247.280 meninas de 10 a 14 anos se tornaram mães no Brasil. Apesar de uma queda ao longo dos anos, o último período analisado ainda registrou mais de 14 mil gestações nessa faixa etária. Além disso, o 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública revelou que o país teve 73.024 estupros em 2022, sendo a maioria das vítimas meninas: de cada 10 casos, 7 foram cometidos contra crianças de até 13 anos. Isso significa que quatro ocorrências envolvendo menores nessa faixa etária são registradas por hora no Brasil, e duas das vítimas acabam engravidando como resultado desses crimes. Os dados também apontam que 57% das vítimas eram negras e que 68% dos estupros ocorreram dentro de casa, com a gravidade adicional de que em 64% dos casos, os autores eram familiares das vítimas. Esses números alarmantes evidenciam a urgência de políticas eficazes de proteção às meninas e mulheres, visando a prevenção da violência sexual e a garantia dos seus direitos reprodutivos. Esses números alarmantes evidenciam a urgência de políticas eficazes de proteção às meninas e mulheres, visando a prevenção da violência sexual e a garantia dos seus direitos reprodutivos. Por isso, repudio esse projeto e me posiciono pelo seu arquivamento. São esses os dados que deveriam chocar mais e mobilizar a sociedade. Quando uma menina se torna mãe, em um contexto de violência sexual, é sinal de que falhamos como Estado ao negar a ela a proteção para que sua infância seja plena de direitos e ao não a acolher de forma eficaz, efetiva e célere. Dessa forma, obrigá-la a manter a gestação, tornando a punição da vítima superior à punição do criminoso, é absolutamente desproporcional, desumano, revitimizador e violador da dignidade humana.
Além disso, é crucial a implementação de políticas de educação sexual nas escolas, que abordem de maneira abrangente e inclusiva temas como consentimento, prevenção de abusos e saúde sexual. Embora haja oposição da extrema direita a essas medidas, diversas evidências e estudos demonstram que a educação sexual nas escolas é a forma mais efetiva de prevenção, capacitando crianças e adolescentes a identificarem e lidarem com situações de risco de maneira informada e consciente.
Diante do cenário descrito, é profundamente preocupante ver a extrema direita ganhando espaço no debate dentro do Congresso Nacional, especialmente quando suas propostas ameaçam os direitos reprodutivos das mulheres. Este movimento não apenas polariza o ambiente político, mas também coloca em risco os avanços conquistados em direitos civis e sociais, delineando um futuro sombrio para a democracia e a inclusão social.
É fundamental reconhecer que o Brasil é signatário de importantes tratados internacionais que visam assegurar os direitos das mulheres, como a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW) e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, conhecida como Convenção de Belém do Pará. Estes tratados, juntamente com outros como a Convenção sobre os Direitos Políticos da Mulher e a Convenção Internamericana sobre a concessão dos direitos civis da mulher, estabelecem um compromisso internacional em promover a igualdade de gênero e proteger as mulheres contra todas as formas de violência e discriminação. A discussão de políticas que visam punir e criminalizar mulheres, em vez de proteger seus direitos fundamentais à vida, à saúde e à dignidade, vai contra os princípios desses tratados e os compromissos assumidos pelo país. Portanto, é essencial que as políticas nacionais estejam alinhadas com os padrões internacionais de direitos humanos, garantindo que os direitos das mulheres sejam respeitados e promovidos em todos os níveis da sociedade.
*Dandara Tonantzin é deputada federal (PT-MG)
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.