Neste domingo (07/04) é o Dia Mundial da Saúde. No Brasil e no mundo, os debates públicos sobre saúde ganharam destaque após a pandemia de Covid-19. O mundo inteiro passou por uma experiência coletivamente traumática, ainda que com diferenças regionais. A experiência do povo brasileiro teve contornos especialmente cruéis, durante o governo negacionista e genocida de Jair Bolsonaro. De forma geral, abriu-se um período para uma discussão mais ampla sobre a capacidade de resposta dos sistemas de saúde em situações de pandemia, considerando os avanços das políticas neoliberais que fragilizam esses sistemas. Viu-se uma enorme contradição: enquanto a maioria do povo lutava por suas vidas, e os sistemas públicos de saúde saturavam, uma minoria aumentava seus lucros. No Brasil pandêmico, convivemos com o aumento da pobreza e das mortes, enquanto houve um aumento do número de bilionários, em especial bilionários do ramo da saúde.
Naquela época era comum a associação de trabalhadores da saúde a heróis. A situação dramática de inúmeras mortes, serviços de saúde lotados, falta de insumos básicos e condições de trabalho precárias mostravam que essa suposta valorização, na realidade, escondia uma ideia de glamourização da precariedade. Na prática, atrapalhava a organização e luta de trabalhadoras e trabalhadores da saúde por melhores condições de trabalho, além de exercer um papel de controle a partir da introjeção, pelo próprio trabalhador, dessa ideia. É claro que a pandemia apenas acentuou um processo que já estava em curso: os avanços das políticas neoliberais, as medidas de ajustes fiscais e a crise do capital já pressionavam e ainda pressionam os sistemas públicos de saúde.
No Brasil, vivemos essa realidade em um processo de avanço do capital privado inclusive para o interior do SUS. O subfinanciamento e o atual desfinanciamento - devido às medidas de teto de gastos - do sistema de saúde público brasileiro atrelado ao processo de privatização dos serviços de saúde são uma dura realidade enfrentada por trabalhadores e usuários do SUS. Ainda que esse processo seja complexo, é possível resumir o processo da seguinte forma: o bolo de dinheiro público utilizado para financiar políticas públicas de saúde está sendo pouco a pouco desviado para, direta ou indiretamente, bancar lucros de empresários da saúde. Isso, a partir de supostas “parcerias”, “convênios”, isenções, ou outros formatos que permitem que empresários abocanhem não apenas os valores pagos por clientes de seus planos particulares, mas também verbas públicas destinadas ao SUS.
A cidade de São Paulo, hoje, é o grande laboratório desse processo. Empresas privadas administram quase que a totalidade dos serviços de atenção primária (as UBSs e AMAs). Só em 2023 os contratos de gestão e convênio com essas empresas abocanharam 11,6 bilhões do orçamento público do município e em nada isso refletiu melhora nos serviços de saúde. Pelo contrário! A Secretaria de saúde é a que mais recebe reclamações da população dentre todas as secretarias da Prefeitura Municipal de São Paulo. Observamos, por um lado, profissionais da saúde trabalhando em uma realidade de enorme pressão assistencial, com equipes reduzidas e cobrança de metas que não respondem às diretrizes do SUS, muito menos são condizentes com a demanda por assistência. Por outro lado, pacientes cada vez mais insatisfeitos com o atendimento. Os representantes nos Conselhos Gestores têm medo de se pronunciar, de criticar seus empregadores e sofrer represálias. O assédio é um método comum na gestão em saúde realizada pelas Organizações Sociais que inviabiliza a construção democrática do SUS.
Essa segue sendo a realidade adoecedora para os trabalhadores e perigosa aos pacientes. Uma revisão publicada mês passado na renomada revista The Lancet apontou “que os aumentos agregados na privatização correspondiam frequentemente a piores resultados de saúde para os pacientes”. No Brasil, dos usuários dependentes exclusivamente do SUS, cerca de 70% são negras e negros. Uma política de precarização, portanto, afeta sobretudo a negritude e as periferias que são também o grupo que sofre com uma maior carga global de doenças, inclusive infectocontagiosas. Os dados atuais de dengue na cidade de São Paulo, por exemplo, apontam para uma maior incidência nos bairros mais periféricos da cidade. O modelo de gestão que prioriza os lucros da minoria em detrimento do interesse público, é, portanto, também um modelo que aprofunda o racismo estrutural.
No mês passado, a prefeitura de São Paulo decretou emergência de saúde pela epidemia de Dengue após atingir a marca de cinquenta mil casos e onze óbitos. Apesar da previsibilidade do aumento de casos da doença nesse período, a situação nos serviços de saúde mostra uma resposta improvisada e feita às pressas. Esse gabinete de vereadora recebe, cada dia mais, denúncias e reclamações justas de trabalhadores e usuários do SUS. Estamos lutando junto aos movimentos de trabalhadores, por concursos públicos para a área de saúde, e pela convocação imediata dos provados no último concurso, realizado em 2017. Vale ressaltar que a cidade de São Paulo possui cerca de 1900 agentes de endemias, número completamente insuficiente diante da demanda crescente da doença dos casos de dengue.
Tomo a liberdade de finalizar apontando algumas medidas que defendo e que podem contribuir para o fortalecimento do SUS, seus trabalhadores e os pacientes. É preciso rever a forma de gestão, a partir de um plano de transição para a retirada progressiva das Organizações Sociais, em especial as Organizações envolvidas em irregularidades financeiras. A gestão dos serviços de saúde deveria ser responsabilidade indelegável do Estado, portanto do governo e gestão pública que o ocupa. Assim, ampliar o investimento direto no SUS, abrindo concurso público para que os profissionais que hoje atuam na OSS possam ingressar na carreira pública com estabilidade. Valorizar os trabalhadores, apresentando plano de carreira, com salários, carga horária e condições de trabalho dignas. O piso salarial da enfermagem conquistado com muita luta da categoria deve ser expandido para todas as categorias de saúde. É fundamental também ampliar a cobertura de Estratégia Saúde da Família na cidade. O índice de cobertura, de pouco mais de 40% em 2021, segue ridiculamente baixo. Ampliar a quantidade de equipes ESF distribuídas pelos territórios é essencial para o acompanhamento longitudinal das famílias. Esse acompanhamento significa ter um mapeamento fino da condição de saúde da população, facilitando assim a elaboração de políticas públicas, a prevenção de doenças e a diminuição da sobrecarga em toda a rede.
Essas não são ideias novas. São defesas historicamente levadas por movimentos sociais de saúde, por intelectuais da área reconhecidos internacionalmente, pelos trabalhadores e defensores do SUS. Mas então porque não foram implementadas até hoje? Porque não basta bons projetos, é preciso vontade política e sobretudo luta organizada da população para pressionar os que estão em cargos de gestão. Já se passaram 4 anos da pandemia e se os governos reconhecessem, verdadeiramente, os trabalhadores da saúde enquanto heróis, e a saúde como prioridade, a realidade seria outra.
*Luana Alves é vereadora do PSOL na Câmara de São Paulo
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum