OPINIÃO

Oito de março e a constitucionalização, na França, de um direito fundamental - Por Kellen Alves Gutierres

Os direitos reprodutivos são condição da inclusão plena das mulheres na democracia, porque significa garantir às mulheres a dignidade do status de individuo

Créditos: Cris Faga/Folhapress
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O início da minha vida sexual foi, antes de tudo, marcado pela preocupação em evitar a gravidez. Antes do prazer, bem antes. Eu sempre soube que devia “me prevenir”. Assim mesmo, em primeira pessoa. Não era uma questão para o parceiro, que no máximo perguntava: você toma pílula? Ou me encorajava a tomar, se a relação se tornasse algo mais estável, para desobrigá-lo desde logo ao uso do preservativo. E eu sempre tive uma disciplina quase obsessiva com a questão da contracepção: sabia que o estado não me assegurava o direito humano fundamental de dispor do meu corpo. 

Nunca precisei recorrer ao aborto e, se tivesse tido essa necessidade, teria feito sem pestanejar. E sei o privilégio que seria ter os meios para isso, do qual são privadas a maioria das mulheres. Eu sou absolutamente a favor do aborto. Absolutamente. É, sim, uma questão de saúde pública, já que mulheres morrem todos os dias por não terem direito à interrupção voluntária da gravidez. Mas antes de tudo: as mulheres são humanas. Desejam ou não desejam. Cada um pode, sim, ter a crença que for. Mas o direito de decidir e dispor do seu corpo não é só uma questão de saúde pública. É um direito fundamental. Uma mulher pode e deve interromper uma gravidez porque assim deseja, sem ser julgada, sem ser assediada por quem quer que seja, desde religião à profissionais de saúde, sem nem mesmo ter que dar qualquer explicação acerca de sua decisão. É um direito. 

Hoje eu moro num país que assegura esse direito fundamental e que, nessa semana, aprovou a incorporação desse direito em lei constitucional. Um tremendo avanço, que acontece no rastro da extrema direita que cheira o cangote do Estado francês e está, mais do que nunca, em condições de tomá-lo de assalto. Quando a interrupção voluntária da gravidez – IVG – é constitucionalizada, isso se torna direito fundamental e não apenas uma prática permitida, assegurada pelo sistema de saúde pública e descriminalizada, como já acontece desde 1974. Nesse sentido, vale sublinhar o termo que designa a prática do aborto na França – IVG, uma sigla: interruption voluntaire de la grosssesse. Ouvindo essa sigla a semana toda, pensei ao mesmo tempo na assertividade do termo – uma interrupção voluntária da gravidez, feita por um procedimento de saúde assegurado pelo Estado – mas também no peso que a palavra aborto ganha no debate público e, pior, na boca de homens que acham realmente que devem legislar sobre nossos corpos.

Como afirmaram as chamadas sage-femme, que são uma espécie de enfermeiras especializadas no cuidado com a saúde reprodutiva de mulheres aqui na França, em reportagem do Libération do dia 05/03/2024, hoje o IVG é um ato medical com risco extremamente pequeno; no entanto, antes de 1975, quando foi descriminalizada, a interrupção clandestina da gravidez era principal causa de morte para meninas jovens. Lembrando esse período, uma delas disse algo que me tocou muito: “há mais de uma geração que as jovens não conseguem mais alegrar-se com estas vidas salvas porque não viram as suas irmãs, suas melhores amigas ou mesmo as suas mães morrerem por causa de um aborto. Eles estão cientes disso, mas não está escrito em suas cabeças. Por outro lado, está na minha e posso ver até onde chegamos”. Pensei que eu tenho sim essa violência escrita na minha cabeça. Lembrei da imagem de uma amiga que acompanhei à uma clínica clandestina, horrorosa, nós duas tão meninas, tão jovens, sozinhas. Minha amiga saiu do procedimento abaladíssima, e depois, à noite, teve uma hemorragia; sentiu medo de ir ao hospital e ser criminalizada, e eu também senti medo por ela. Ela está viva, mas depois de mais de 20 anos, no meu país, a realidade é a mesma, o medo, o horror, a privação do direito fundamental de dispor do seu próprio corpo, tudo segue intacto.

Os direitos reprodutivos são condição da inclusão plena das mulheres na democracia, porque significa garantir às mulheres a dignidade do status de individuo – mulheres são humanas e devem participar incondicionalmente dos direitos que o status de pessoa humana comporta. Isso é o que está sendo simbólica e concretamente afirmado na constituição francesa: o status da interrupção voluntaria da gravidez como direito fundamental. A incorporação desse direito à constituição contou com a adesão massiva da população ao projeto de constitucionalizar a lei que descriminaliza o IVG, o que aplacou inclusive a resistência do presidente do Senado Francês em votar o texto, uma vez que o Senado é tradicionalmente mais conservador no país. Além disso, a maior presença de mulheres no Senado é outro ponto importante em favor das condições objetivas para essa vitória histórica. Mulheres precisam ocupar espaços de poder e ter voz para legislar sobre si mesmas. Sabemos e afirmamos cada vez mais essa necessidade.

Claro que o caminho é sempre árduo, e no mesmo momento em que celebram as conquistas, muitas mulheres francesas apontam as dificuldades concretas para a realização do procedimento IVG pelo sistema de saúde público, tal qual garantido na lei: médicos que ainda se recusam (porque sim, podem se recusar), há dificuldade em encontrar os meios para mulheres que vivem fora dos grandes centros urbanos; vigora ainda o impedimento de que uma sage-femme possa praticar o procedimento sem que seja assistida por médicos (o que em si não faz nenhum sentido), além, claro, do julgamento moral, do preconceito, e todo o rol de coisas que bem conhecemos, nós que temos nossos corpos sempre à disposição da sociedade que acha por bem tratar como se matéria pública fosse. Há caminho a percorrer, mas nossos passos vêm de longe. Triste saber que no Brasil o caminho é ainda tão enormemente maior. Mas seguimos juntas, atentas e fortes, desejando não demore o dia em que o respeito pelos direitos fundamentais das mulheres sejam assim assegurados, também, no meu país.

*Kellen Alves Gutierres é doutora em ciências sociais pela UNICAMP e professora na Universidade Jean Moulin - Lyon 3

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum