O GENOCÍDIO NA PALESTINA

Histórias sionistas: sobre como apagar a Palestina - Pedro Lima Vasconcellos

Quando enfim for destruída Rafah e por fome e armas for dizimada sua população, sim, aquela que foi forçada a deslocar-se para lá, supostamente para ser protegida do massacre que mais ao norte era perpetrado, qual nome se dará àquela localidade, para que nenhuma memória da barbárie perdure?

Destruição de Gaza.Créditos: Reprodução/ONU
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Os tempos atuais mesclam, explosivamente, abismos e cinismos. Vejamos algumas manifestações que chegaram aqui e ali, por meio desta vastidão que são as redes sociais: 

- Estados Unidos e União Europeia, alimentadores, com as armas e todo tipo de apoio que fornecem, da sanha genocida levada adiante pelo Estado de Israel, inventam malabarismos – especialmente aéreos – para parecerem sensíveis diante da catástrofe humanitária que são milhares e mais milhares de pessoas ameaçadas de morrerem de fome por conta de uma situação da qual eles são integralmente responsáveis; agora pleiteiam cessar-fogo que só na aparência reproduz termos que antes rejeitaram, permitindo com isso a continuidade e ampliação do massacre em Gaza; 

- enquanto Lula, por denunciar o óbvio – naquele que deve ser considerado o gesto mais importante e corajoso de seu até agora errático e acuado governo –, é declarado persona non grata em um país comandado por uma troupe de gente sedenta de sangue palestino, políticos daqui, que igualmente se locupletam com sangue derramado – de gente pobre e periférica, que fique claro –, se apressam em responder favoravelmente a convite recebido para visitarem e se solidarizarem com os agentes do morticínio. O que – assim parece e Tarcísio e Caiado esperam – lhes garantiria dividendos em termos de opinião geral e ganhos eleitorais. Tratarão eles de “sionizar” explicitamente as políticas antipopulares que já conduzem nos estados que comandam? 

- começado o mês do Ramadã, tempo marcado principalmente pela prática do jejum, para além de toda a retórica (é preciso um cessar-fogo, e tantos outros blablablás diversionistas), o que se deu foi que contingentes muçulmanos que se dirigiam à mesquita Al-Aqsa, em Al-Quds (nome árabe para o que é mais conhecido como Jerusalém), para o início das celebrações referidas a este momento crucial do calendário muçulmano foram impedidas, pelas forças da ocupação sionista, de se achegarem ao local sagrado: somente umas tantas pessoas foram autorizadas a adentrar o recinto para realizarem o primeiro taraweeh – preces realizadas à noite, tempo do dia em que também o jejum total é suspenso. 

Restrição total era o que queriam alguns dos membros do gabinete Netanyahu; restrição parcial foi o que acabou por decidir o chefe do governo; fosse uma, fosse outra, a brutalidade do que está sendo perpetrado só se explica a partir de um processo de longa duração que vem sendo conduzido pelo movimento sionista desde inícios do século XX, antes mesmo de ele impor ao território palestino um Estado racista: um processo de “despalestinização”, o que inclui necessariamente realizar a “desislamização” dele. Agressões de variada ordem e em outros sítios da Palestina vêm ocorrendo nestes dias sagrados, como podemos acompanhar se procurarmos as notícias em fontes que não aquelas comprometidas com o projeto sionista, inescapavelmente supremacista. Afinal de contas, trata-se de recuperar aquelas terras que – mesmo aqueles sionistas ditos “laicos” e “de esquerda” acabam por reconhecer, de maneira mais ou menos envergonhada – teriam sido prometidas por D’us a seu povo eleito… 

Sim, “despalestinizar” a Palestina. Este processo não só vem sendo levado a cabo há um século, como também assume as formas mais variadas e mesmo inesperadas. Aqui me atenho a um destes procedimentos: reescrever a terra (sim, pois “escrever a terra” é o sentido do termo “geografia”). Trata-se efetivamente de anular as grafias anteriores e impor uma nova. Senão vejamos. 

Numa declaração dada ao jornal israelense Ha’aretz, de 04 de abril de 1969, Moshe Dayan – figura icônica por conta do tapa-olho que portava desde quando foi alvejado em um dos tantos combates em que se meteu ao longo da vida –, então ministro da defesa do Estado sionista, nos tempos do domínio trabalhista (ou seja, dos tais “sionistas laicos e de esquerda”), expressava, em tom indisfarçavelmente triunfante, sua constatação: àquela altura inúmeras vilas judaicas haviam sido construídas em lugar de vilas árabes, numa velocidade tão frenética que os nomes destas últimas, existentes até há tão pouco tempo, já não mais eram conhecidos de modo geral: nem mesmo os livros de geografia que os registrariam existem... E, num acesso de mórbida sinceridade, jactava-se: não havia nenhum lugar em que construções erguidas a mando de Israel não se sobrepusessem a populações árabes até então ali residentes. Ou seja, toda uma geografia tradicional palestina, com marcas toponímicas definidas em percursos seculares, havia sofrido, já desde os anos 1920 de forma titubeante – por causa de inicial recusa do mandato britânico que então controlava a região em apoiar a iniciativa –,  mas especialmente a partir da década de 1940, agressivo e sistemático processo de apagamento, levado a cabo em meios aos movimentos que conduziriam à imposição do estado israelense-judeu em terras palestinas, e principalmente depois e a partir dela.  

Esta é uma constatação que a seu tempo fazia, de amplitude geral, o político sionista, de triste memória. Mas posso avançar e recolher outra memória, que permite explorar um pouco mais extensamente a questão. 

Trata-se das lembranças de alguém que se viu pessoalmente envolvido neste processo de encobrimento, de “despalestinização” e reescritura do território. Meron Benvenisti (1934-2020) foi um destes ditos “sionistas de esquerda”, chegou a ser vice-prefeito de Jerusalém; no entanto, a despeito disso, dizia defender a solução de um Estado binacional. Bem, mirando retrospectivamente, Benvenisti reconhecia que as ações levadas a cabo por Israel – projeto com o qual, a despeito de tudo, estava visceralmente comprometido – haviam levado a que quase todos os marcos palestinos na região se encontrassem irremediavelmente desfigurados, isso em quase meio século de truculências intervencionistas no território e sobre a população autóctone. Homem dedicado também às letras, professor que era de Ciência Política, deixou livros em que se revelam sentimentos de autocrítica frente aos malfeitos e de justificação deles, numa síntese que mesmo a melhor e mais generosa dialética teria dificuldade de sustentar. Seja como for, numa obra surgida em 2000, Sacred Landscape: the Buried History of the Holy Land since 1948 (Paisagem sagrada: a história apagada da Terra Santa desde 1948, sem tradução ao português), Benveniste narra, com riqueza de detalhes, como mesmo antes da imposição do Estado de Israel o movimento sionista vinha operando uma demolidora transformação da geografia humana da Palestina, ingrediente indispensável na efetivação da “Nakba” (palavra árabe para “tragédia”), cuja amplitude e complexidade o autor tende flagrantemente a minimizar. Sua exposição pormenorizada a respeito da política sionista de renomeação da terra e de seus milhares de sítios mostra de que maneira esta jogou papel decisivo para a legitimação e consolidação da prática sistemática de expulsão da população autóctone e de inviabilização de um futuro regresso deste contingente de exilados cujo montante está na casa de alguns milhões.  

É que, quando jovem, Benvenisti costumava acompanhar seu pai, geógrafo de renome, descendente de conhecida família de rabinos, membro da Haganah – organização miliciana tida por “moderada” frente a outras que operavam na defesa dos assentamentos de gente invasora frente à resistência palestina –, atuante na batalha pela invasão de Jerusalém em 1948, em sua atividade de percorrer a Palestina refazendo mapas da região, renomeando lugares e acidentes geográficos com nomes extraídos das escrituras judaicas. Em seu trabalho, de alguém postado na condição privilegiada de testemunha ocular, ele oferece elementos de sobra para que se entendam os caminhos e as lógicas que permitiram a uma paisagem palestina, expressa em árabe, ser remodelada em vistas a comparecer aos novos olhos como israelense, tendo como esteio justamente uma tal geografia mítica (bíblica) e respaldada por um Estado judeu, aquele recentemente imposto à cena e à população local. 

Logo no início Benvenisti coloca as questões que se lhe vinham sendo colocadas já há muitos anos, desde a metade do século passado. Diz ele recordar-se da primeira vez em que – o tom é de confissão – sentiu a tragédia palestina penetrar seu escudo sionista. Se não podia aquilatar o senso de perda que aquela gente estava experimentando, podia, isso sim, compartilhar a profunda nostalgia se apossava dela, mesclada com a dor derivada pela privação de uma terra que ela sempre tomou como sua. E prossegue, revelando ter sido tomado de um incômodo sentimento de culpa, pois, afinal de contas, “meu triunfo tinha sido a catástrofe deles”. Mais ainda: reconhecendo que aquela população era feita de irmãos seus que se mostravam agora inimigos mortais, punha-se a questão e já dava a resposta, mesmo que em forma de outra pergunta: “o que nós fizemos ao inimigo vencido? Transformamos uma luta pela sobrevivência numa operação de limpeza étnica, enviando pessoas para o exílio porque queríamos saquear sua terra?” 

Aparentemente Benvenisti não acreditou na conclusão a que forçosamente teria de chegar. Seja como for, seu livro recolhe memórias vívidas, que registram o progressivo aniquilamento dos marcos árabe-palestinos da região. A nova cartografia, que deveria substituir aqueles mapas tornados vetustos “a fórceps”, exprimia algo de muito maior dramaticidade, pois que se tratava de remodelar a terra para corações e espíritos dos contingentes que já há décadas invadiam a terra e a ocupavam como se fossem sua desde tempos imemoriais. Afinal de contas, não foi à toa que, no contexto da afirmação do Estado sionista, foi criado um “Comitê para a Toponímia das Aldeias”, ligado diretamente ao gabinete do então primeiro-ministro David Ben-Gurion. Seu estabelecimento explicitou o entendimento da cartografia como um instrumento essencial de poder, antecipando e direcionando a reconfiguração do território. Eram razões de Estado as que determinavam a remoção dos nomes árabes; estes eram expressões espirituais de inaceitável consciência política de posse e usufruto da terra. 

Nessa perspectiva, a implacável remoção das aldeias árabes do mapa, renomeadas “biblicamente”, esvazia-as de seu lastro histórico secular, além de, em tantos casos, destituí-las de sua realidade física. Pode-se sem dificuldade conceber como tais empreendimentos no campo da toponímia e da cartografia se articulam com balas, invasões, demolições, estupros, expulsões, morticínios: é a este conjunto terrível que cabe a denominação “Nakba”. De outro lado, migrantes provenientes de várias partes do mundo (especialmente da Europa), chegando para ocupar uma terra propagandeada como sendo “sem gente”...  

Mas, voltando a Benvenisti, logo no início de seu texto ele registra que nomes como Yotvata, Evrona e Monte Hor, encontrados em livros da Torá (primeira parte da TaNaK, ou seja, a escritura sagrada do judaísmo), foram impostos a sítios sem mesmo que pudesse haver segurança suficiente – pelo contrário, as apreciações de estudiosos eram divergentes – de que em tempos ancestrais eles teriam sido nomeados como tais; era irresistível, para os membros do tal comitê voltado à “retoponimização”, avançar para além do que permitiriam as indicações documentais e os pudores “científicos”. Foram mais de nove mil acidentes geográficos (montes, vales, cursos d’água, etc.), vilas, ruínas, itens da flora e da fauna, que foram renomeados com termos e expressões hebraicas referidas em passagens escriturísticas. 

O estudioso dos textos bíblicos Thomas Thompson constatou que a “desarabização” do território produziu pesados danos a todo um patrimônio histórico e cultural na região. Mas era justamente esse o propósito buscado pela ação conduzida pelo tal comitê e por outras iniciativas similares. E o resultado a que se chegou foi de tal monta, a eficácia no apagamento sistemático do passado recente da região foi tão avassaladora que, a certa altura, Benvenisti arrisca uma comparação chamativa: mesmo quinhentos anos depois da expulsão moura da Península Ibérica pelos “reis católicos” (em fins do século XV), a Espanha, principalmente em sua região sul, preserva marcos suficientes que permitem divisar os contornos do que um dia fora Al-Ándalus de tantos séculos, aqueles que costumamos denominar medievais. Mas alguém da Palestina que, sujeito a qualquer dos lances da Nakba que o tivessem obrigado a deixar seu lugar natal, se porventura pudesse retornar a ele teria dificuldade de localizá-lo, e ainda mais de identificar onde um dia tinha existido o seu lar. A leitura de livros contendo fotos da região antes e depois de 1948 mostra o quanto – isso ele escreve em 2000! – se estava perto de ser possível considerar a paisagem árabe desaparecida apenas uma peça ficcional, de propaganda árabe, uma fabricação que serviria apenas para fomentar o ódio palestino e os anseios por uma destruição de Israel que permitiria aos tantos contingentes de refugiados o retorno a seus lugares de origem. 

Ao final, ficam as perguntas: quando enfim for destruída Rafah e por fome e armas for dizimada sua população, sim, aquela que foi forçada a deslocar-se para lá, supostamente para ser protegida do massacre que mais ao norte era perpetrado – assim se dizia – qual nome se dará àquela localidade, para que nenhuma memória da barbárie que impunemente se comete diante de nossos olhos perdure no porvir? Ou enfim as ações de extermínio serão contidas? E como? Agora aprovam – com a abstenção eloquente da potência sustentáculo do massacre – um cessar-fogo, a vigorar (apenas!) nos dias restantes do Ramadã, passados mais de trinta mil mortos: estamos ou não entre abismos e cinismos mesclados?