A recente fala de Lula comparando as ações do estado de Israel ao sofrimento do holocausto causaram furor entre os que promovem o massacre na Palestina. Pela primeira vez um líder de uma das 10 maiores economias do mundo buscou dar a exata dimensão histórica e humanitária ao que vem ocorrendo contra os palestinos, de forma aberta para todo o mundo ouvir, arranhando a autoimagem que Israel e o “ocidente civilizado” tem de si mesmos, como cavaleiros da justiça em cruzada contra o mal e o terror.
Com a escalada da violência do estado de Israel contra a Palestina a tarefa do imperialismo de manter, no plano do debate internacional, qualquer nível de legitimidade que justifique as ações de Netanyahu e seus comandados em Gaza vem tornando-se cada vez mais difícil. Face a isso eles se agarram à ultima cortina que resta para escondê-los do crime contra a humanidade que praticam: usar cinicamente as pessoas mortas no holocausto como escudo moral de suas ações tenebrosas.
Qualquer crítica que se faça à brutal matança de mulheres e crianças em Gaza logo encontra nas vozes do imperialismo uma espécie de aviso de advertência sobre um suposto antissemitismo, como se defender a inviolabilidade da dignidade do povo judeu devesse necessariamente passar pela impossibilidade de criticar qualquer ação do Estado de Israel. Trata-se, obviamente, de uma tática política cínica.
Mas Lula fez mais do que chamar a matança que Israel promove pelo nome que merece, ou seja, genocídio. Dessa vez incorporou à sua crítica uma comparação entre as investidas de Netanyahu e as ações de Hitler contra o povo judeu, que durante o nazismo redundaram num dos mais trágicos episódios da história da humanidade.
Desde então a reação dos grupos de extrema direita que comandam Israel encontrou perfeita sintonia com a grande mídia brasileira, vassala das posições do império estadunidense e seus aliados, entre os quais o estado israelense. Brada-se aos quatro cantos que Lula teria feito um discurso antissemita desrespeitoso, ferindo a memória das vítimas do holocausto.
Ora, não há maior desrespeito contra vítimas de injustiças do que a reprodução, em novas vítimas, do sofrimento, da dor e desespero que elas experimentaram. Nada mais poderia representar uma vergonhosa posição frente aos mártires do holocausto que a repetição consciente e deliberada, contra outro povo, de matança generalizada às quais foram tristemente submetidas. O sentimento de solidariedade dos que sofreram no holocausto certamente encontraria nas vítimas inocentes dos brutais ataques israelenses em território palestino seu destino final, jamais nas ações do primeiro ministro de Israel, responsável direto pela morte de quase 30 mil pessoas em 4 meses, 75% das quais mulheres, idosos e crianças.
Não é Lula quem produz morte, mutilações, despejos, destruição de cidades e famílias inteiras de forma indiscriminada. Não é Lula que transforma uma região inteira num verdadeiro gueto com acesso escasso a luz, água, comida e medicamentos. Não é Lula que mata de forma indiscriminada crianças, que destrói hospitais, que promove o deslocamento de milhões de pessoas a vagarem perdidas e desesperadas em sua própria terra, enquanto fogem de bombas que não diferenciam base militar de vilas residenciais. Não é Lula que trata os palestinos como animais, como seres humanos descartáveis sobre os quais podem cair bombas aos montes, dos quais podem se arrancar braços, pernas, vidas a qualquer momento para se chegar ao objetivo de derrotar um grupo inimigo de Israel.
É com as mães que perderam seus filhos, com os pais que tiveram suas crianças arrancadas de seu convívio, com as centenas de milhares de pessoas feridas, com fome, com sede, humilhadas, desterradas, sem casa, sem destino, sem família que certamente está o coração de quem já sofreu qualquer episódio de violência em massa. São vítimas da mesma brutalidade, tem eles o mesmo coração dilacerado pela violência injustificável.
Aqueles que usam o holocausto como escudo para defender-se das justíssimas acusações de Lula, que nada mais fez que evocar a memória de vítimas num clamor pela paz, esses sim, devem envergonhar os judeus que jamais querem para si e para qualquer outro povo o inferno que vivenciaram. E Gaza hoje é um inferno onde queimam restos humanos misturados a escombros, onde caminham errantes milhões de palestinos.
Observadores da ONU em recente relatório chamam Gaza de campo de concentração. O Tribunal de Haia aceitou julgar Israel e advertiu o estado israelense quanto às ações levadas a cabo em Gaza. Fora isso as imagens, os relatos, os exemplos são fartos quanto ao imenso sofrimento imposto ao povo Palestino. Há declarações de ministros de Israel incitando uma verdadeira limpeza étnica e tomada à força do território de Gaza. Há incontáveis vídeos de denúncias de crimes de guerra de soldados israelenses contra cidadãos palestinos desarmados. Lula erra ao dar voz às vítimas dessas violações e comparar acertadamente os que as promovem aos que já as promoveram em outra época? Ou erra a mídia ao amplificar o cinismo dos que matam, massacram e exterminam famílias palestinas inocentes?
Os mesmos países imperialistas super sensíveis à tragédia do holocausto são os que promoveram hecatombe similar: a diáspora negra e a escravidão e morte de milhões e milhões de africanos por séculos. Não me parece essa, na fala daqueles, uma ferida igualmente latejante. Tanto não é que seguem impondo à África papel de subalternidade e atuam contra ampliação de cooperação com os países africanos. A dor negra não os toca, como não toca a nossa mídia, que não consegue enxergar que o Brasil promoveu seu próprio holocausto, contra os negros, quando 60% dos escravizados trazidos da África eram crianças, milhares morriam amontados em navios e milhões, de todas as idades, eram mantidos encarcerados, sob maus tratos, nas senzalas, sem nunca, jamais seus descendentes terem recebido a reparação devida do Estado brasileiro. Um dos grandes nomes dessa mídia, Ali Kamel, diretor de jornalismo da Globo, é dos ferrenhos opositores, por exemplo, da lei de cotas raciais nas universidades. Mesmo assim são eles que saem agora em defesa oportunista de memória e reparação para judeus mortos na Europa.
Enquanto isso Lula está na África falando em “dívida do Brasil com o continente africano” e buscando parcerias naquela região. No mesmo continente que se levantou contra o massacre israelense em Gaza e levou Netanyahu ao banco dos réus no tribunal de Haia, através da África do Sul. Em nenhum momento a mídia brasileira fez a conexão entre a relação histórica da luta sul africana contra o apartheid e a luta palestina contra a limpeza étnica em Gaza. Não fez porque não enxerga os negros, os árabes, os ameríndios exterminados por figuras como Borba Gato, cuja derrubada de uma estátua em sua homenagem causou revolta nos jornalões. Jamais podem esses povos serem protagonistas do mundo, são para o projeto colonial do imperialismo sempre invisíveis e indesejados.
A ação da África do Sul foi um dos mais bonitos episódios de solidariedade entre povos da história recente da humanidade. Mas a mídia, pequena, mesquinha, subserviente, preferiu ignorar a dimensão simbólica histórica do que ali estava ocorrendo para discutir querelas relacionadas ao termo “genocídio”, tentando se refugiar da impossibilidade de defender o indefensável.
Ao criticar o bloqueio de financiamento para fundo de ajuda humanitária em Gaza por parte dos países ricos e ao evocar a memória dos que sofreram no holocausto em defesa do fim do massacre, Lula deu voz ao mundo periférico, colonizado e oprimido pelo “ocidente civilizado”. Lula, um latino americano nascido na periferia do mundo, vítima da fome, bradou ao planeta, direto da Etiópia, lugar outrora admirado pelos próprios gregos Aristóteles e Platão, a frente do pensamento branco antes mesmo da Europa ser Europa, dali falou Lula, em nome dos condenados da terra: chega! Queremos paz e dignidade para os palestinos e todos os povos.
Passado o barulho do latido dos cães ferozes a caravana passará e esse episódio será mais um a consagrar Lula como a voz do novo mundo.
Que as vítimas do holocausto descansem em paz, sejam sempre lembradas e reverenciadas, jamais usadas como escudo de proteção por criminosos de guerra. Que o povo judeu tenha sempre garantido seu direito a vida, a dignidade, a liberdade e autodeterminação. E que o povo da Palestina seja libertado do campo de concentração em que hoje vive e tenha igual direito a todas essas conquistas. Para isso são necessários mais Lulas e Mandelas, menos Netanyahu, Bushs e Hitleres.
Que assim seja.