RESGATE HISTÓRICO

Um passo importante para vítimas da ditadura – Por Arthur Serra

Em tempos de “Ainda Estou Aqui”, é sempre bom ressaltar a importância da mudança nos atestados das vítimas da ditadura empresarial-militar de 1964

Fernanda Torres em cena de 'Ainda Estou aqui' e Eunice Paiva recebendo o atestado de óbito do marido.Créditos: Divulgação e Reprodução
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Nos 60 anos do golpe empresarial-militar de 1964 e no momento em que o filme “Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles, baseado no livro de mesmo título de Marcelo Rubens Paiva, vem sendo amplamente assistido e aclamado pela crítica brasileira e internacional, foi dado um passo importante para as vítimas da ditadura empresarial-militar, seus familiares e para todos aqueles que travam uma luta pelos direitos humanos no Brasil, pela memória, verdade e justiça.

A família do ex-deputado Rubens Paiva lutou na justiça e aguardou 25 anos após seu desaparecimento para que o Estado brasileiro reconhecesse oficialmente sua morte sob tortura durante a ditadura empresarial-militar. Esse reconhecimento foi um marco importante para os Paiva e para o Brasil, pois expôs oficialmente o envolvimento do Estado em um crime contra um ex-parlamentar, mas sobretudo contra um brasileiro que em tempos de Terrorismo de Estado ajudava pessoas perseguidas pela ditadura a se comunicarem com conhecidos, amigos e familiares através de cartas.

Tal ato de Rubens Paiva nos faz recordar a solidariedade, a simples ação de ajudar ao próximo. Rubens, antes de se tornar uma figura pública, um engenheiro civil, foi um cidadão santista nascido no ano de 1929, na cidade onde, nas décadas de 1950 e 1960, eram comuns as chamadas greves de solidariedade entre os trabalhadores.

Tais greves eram coordenadas pelo Fórum Sindical de Debates (FSD), organização intersindical que funcionou em Santos, entre os anos de 1956 e 1964, e teve a capacidade de unir em torno de si 54 sindicatos da Baixada Santista. No fórum, sindicatos de diversas categorias se reuniam para tratar de questões comuns aos trabalhadores.

As greves funcionavam da seguinte forma: um sindicato entrava em greve, pedia apoio ao fórum que se reunia, em encontro aberto, onde cada um dos sindicatos da região associados tinha direito a dois votos. E, assim, o fórum decidia por ajudar na greve em que fosse solicitado, com a paralisação das categorias associadas a ele. Essa articulação dos trabalhadores de Santos fazia com que a cidade parasse, causando, desta forma, impacto para que atingissem o objetivo, que era negociar direitos da classe que iniciou a greve com aqueles que eram seus superiores, seus chefes no trabalho, seja no serviço público ou privado.

Entre os sindicalistas e o ex-deputado, as práticas de solidariedade foram distintas, mas a essência era a mesma: ajudar quem precisava.

A mudança nos atestados de óbito das vítimas da ditadura empresarial-militar vai além dos casos emblemáticos como o de Rubens Paiva, uma figura pública cuja luta de sua esposa, Eunice Paiva, em busca da verdade sobre o ocorrido com ele, contou com maior visibilidade. Essa iniciativa alcança também aqueles que não tiveram a mesma projeção, mas cuja perda foi igualmente devastadora para suas famílias.

Durante a ditadura empresarial-militar, muitas vítimas eram trabalhadores, sindicalistas, estudantes e cidadãos comuns, que não possuíam recursos ou influência para garantir que suas histórias fossem ouvidas. O impacto dessas mortes foi silenciado por décadas, com famílias sofrendo pela perda e com a impossibilidade de esclarecer a verdade sobre as circunstâncias de suas mortes.

A mudança nos atestados de óbito foi efetivada por meio da Resolução nº 466, de 22 de junho de 2022, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), e aprovada por todos os membros do CNJ em 10 de dezembro de 2024, no Dia Internacional dos Direitos Humanos. Essa alteração é um gesto de justiça, que reconhece que a violência da ditadura empresarial-militar não escolheu classe social, profissão ou relevância pública. É um esforço para reparar, ainda que tardiamente, o apagamento histórico que relegou muitas dessas histórias ao esquecimento.

Nas novas certidões de óbito das vítimas da ditadura empresarial-militar deve constar: “Morte não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro no contexto da perseguição sistemática à população identificada como dissidente política do regime ditatorial instaurado em 1964”.

A iniciativa também se alinha à Comissão Nacional da Verdade, que com seus relatórios produzidos destacou a importância de reconhecer as injustiças do passado para consolidar uma memória coletiva que repudie o autoritarismo. Ou seja, o reconhecimento das vítimas e das graves violações praticadas por agentes do Estado, na ditadura de 1964, é um dever do Estado para a consolidação da confiança da sociedade nas instituições e na democracia que fora usurpada em 1964 e reestabelecida a partir de 1985.

A retificação dos atestados representa mais do que uma correção documental, é uma reparação moral e histórica. Ela reafirma que, para construir uma democracia sólida, é imprescindível encarar o passado com transparência e responsabilidade. Como afirmou a historiadora Heloísa Starling, em entrevista para a revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos (2013), “reconhecer oficialmente a verdade histórica é um passo fundamental para construir um futuro democrático”. No Brasil observamos que, em 2022, houve uma tentativa de golpe de Estado e frente a isso se faz necessário reafirmar a democracia como único caminho viável.

Além disso, a mudança nos atestados de óbito é um marco que repara simbolicamente a memória de cidadãos comuns, de militantes políticos que combateram a ditadura de 1964 e sofreram sob a repressão. Essa iniciativa demonstra que o reconhecimento oficial da verdade é um alento às famílias e um compromisso com a justiça.

*Arthur Serra é historiador e mestre em História pela PUC-SP, pesquisador que trata das áreas de História Contemporânea, América Latina e Brasil. É também membro do Centro de Estudos de História da América Latina (CEHAL).

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.

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