Não há dúvida de que o jornalismo deve oferecer espaço para opiniões divergentes e, por vezes, controversas — faz parte da essência de uma sociedade democrática. No entanto, quando o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) ocupa um espaço nobre na imprensa para louvar a democracia, é inescapável o despertar de um mal-estar profundo. Uma náusea. Sensação que, aliás, ressentimos ao som das notícias sobre atentados à bomba e planos para assassinar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), estes descobertos agora.
“Aceitem a democracia”, disse Bolsonaro em artigo publicado nesta Folha. Justo ele. Um político cuja trajetória sempre foi marcada pela admiração explícita por torturadores e pela defesa do golpe militar de 1964. Em seus lapsos de sinceridade, Bolsonaro não só exaltou torturadores como também conspirou contra as instituições, desafiou o sistema eleitoral e lançou desconfiança sobre o Supremo Tribunal Federal — táticas que se repetiram ao longo de seu mandato. Em seus últimos atos no poder, recusou-se a aceitar a derrota nas urnas e, indiretamente, encorajou o caos que tomou Brasília em 8 de janeiro, um espetáculo de vandalismo em nome de um sonho autoritário. Justo ele.
Não são especulações; são verdades documentadas em suas próprias palavras e ações. Seu artigo publicado na imprensa não pode ser lido como se sua trajetória de apoio à ditadura e a métodos autoritários fossem detalhes descartáveis, meros percalços no caminho de uma suposta evolução democrática.
É preciso lembrar, sempre.
O período da ditadura militar no Brasil, entre 1964 e 1984, deixou marcas profundas. Sob o pretexto de manutenção da ordem, o regime suspendeu liberdades fundamentais, silenciou a imprensa, perseguiu movimentos sociais e perpetrou graves violações de direitos humanos, incluindo tortura, assassinatos e desaparecimentos. Esse período instaurou um trauma coletivo e lançou sementes de desconfiança nas instituições democráticas. Na economia, o crescimento inicial, impulsionado pelo endividamento, colapsou em uma crise grave, aprofundando as desigualdades sociais.
Entende-se que falar em ditadura pode ser algo distante para uma geração de brasileiros que nasceu em uma democracia. Para todos eles, “Ainda Estou Aqui”, filme de Walter Salles em cartaz, oferece uma experiência valiosa ao transportar a plateia para o início dos anos 1970, quando os militares endureciam suas práticas. O filme destaca o drama em torno da prisão, tortura e desaparecimento do ex-deputado e engenheiro Rubens Paiva. Para quem prefere contornar o assunto, não é uma narrativa sobre política; é uma história de dor, angústia e medo — uma linguagem que transcende ideologias e que qualquer ser humano deveria ser capaz de compreender.
Bolsonaro, aparentemente, nunca compreendeu.
Durante a campanha que elegeu Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos pela segunda vez, analistas se perguntavam o que levava metade de um país a apoiar um candidato que se refastelou na mentira, na ferocidade, na misoginia, na xenofobia, nas promessas de vingança e nas propostas econômicas mirabolantes. Pesquisas mostraram que muitos eleitores acreditavam que tais rompantes eram apenas exageros retóricos, uma medida para chamar atenção nas redes sociais. Mas, em uma análise de suas promessas e ações durante o primeiro mandato, o The New York Times fez um alerta: “Acreditem no que diz Donald Trump”.
Também precisamos acreditar em Bolsonaro. Precisamos acreditar quando ele enaltece torturadores, quando celebra golpes, quando fala em fechar o Congresso e intervir no STF, em fuzilar adversários e os mandar para a “ponta da praia”. Precisamos acreditar em sua biografia, uma história de vida permeada por ações coerentes em defesa de um modelo de governo personalista, cruel, insensível e autoritário.
Sem ilusões.
Nesta terça-feira (19), a Polícia Federal prendeu um policial federal e quatro militares no curso de uma investigação sobre um suposto plano para assassinar o presidente Lula, seu vice, Geraldo Alckmin, e o ministro do Supremo Alexandre de Moraes em 2022. A que ponto chegamos!
Segundo a PF, o grupo era liderado por um general que ocupou o cargo de secretário-executivo da Presidência da República durante o governo Bolsonaro. Dias atrás, um homem tentou entrar com uma bomba no prédio do STF. Impedido, acionou o dispositivo e morreu do lado de fora. Em mensagens deixadas pelo terrorista, encontraram os versos da cantilena que ele, justo ele, Bolsonaro, se empenhou em popularizar: ataques aos comunistas, críticas ao Supremo e às urnas eletrônicas.
Os democratas insistem, ao que parece, em não acreditar. Mas há uma alcateia de “lobos solitários” agindo sob sua inspiração, liderança e comando.
*Marco Aurélio de Carvalho é advogado especializado em direito público e coordenador do Grupo Prerrogativas.
**O artigo foi publicado originalmente na Folha de S.Paulo.
***Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.