O judaísmo é uma das religiões mais antigas e culturalmente ricas do mundo, mas muitas vezes a diversidade dentro do povo judeu é desconhecida ou subestimada. Essa diversidade é imensa e vai muito além do estereótipo comum de que todos os judeus compartilham as mesmas características físicas e culturais. O povo judeu é composto por diferentes grupos étnicos, que se espalham por várias regiões do mundo, cada um trazendo consigo sua própria história, tradições e práticas culturais. Desde as comunidades asquenazitas da Europa até os judeus sefarditas da Península Ibérica, passando pelos mizrahis do Oriente Médio e por todo o continente africano, a identidade judaica reflete uma rica tapeçaria de influências e vivências diversas.
Essa diversidade, por vezes, é invisibilizada por produções cinematográficas e televisivas que focam apenas em uma parte da comunidade judaica, perpetuando a ideia de que todos os judeus são brancos ou de origem europeia. Por isso, é tão importante assistir a produções visuais que são feitas por judeus de diversas localidades do mundo, já que essas obras midiáticas trarão mais visibilidade para as identidades plurais dentro do judaísmo. É essencial reconhecer e celebrar as múltiplas faces do judaísmo, que incluem judeus de pele escura, sejam eles árabes, africanos, indianos, negros americanos ou latinos. O mosaico cultural e religioso que compõe o judaísmo demonstra que ele é, acima de tudo, um grupo unido por alguns elementos culturais, mas plural em suas expressões étnicas.
Abrir os espaços educacionais, como seminários, palestras e cursos que abordem a diversidade étnica judaica, é um passo fundamental para desmistificar os estereótipos historicamente construídos sobre os judeus. Quando se compreende e se valoriza essa riqueza de expressões culturais e étnicas, torna-se possível avançar na construção de uma visão mais inclusiva e precisa da história e da identidade do povo judeu. Essa valorização também ajuda a combater estereótipos simplistas e prejudiciais, que frequentemente reduzem os judeus a caricaturas enraizadas em preconceitos históricos e antissemitismo.
Os estereótipos dos judeus, muitas vezes expressos em representações caricaturais, distorcem a diversidade cultural e religiosa da comunidade judaica. Características físicas, como o “nariz judeu”, ou comportamentais, como a ideia de ganância, são exemplos de estereótipos disseminados pela mídia e cultura popular, que reforçam percepções negativas. Além disso, figuras como a “mãe judia” controladora ou a “princesa judia-americana” mimada limitam a compreensão do papel dinâmico dos judeus na sociedade, contribuindo para o reforço do antissemitismo.
Por outro lado, entender as diferentes etnias judaicas e suas raízes históricas é essencial para desmantelar estereótipos prejudiciais. O judaísmo é uma religião praticada por diversos grupos étnicos, cada um com suas próprias tradições, culturas e histórias. Entre as principais etnias judaicas estão os asquenazitas, originários da Europa Central e Oriental, que incluem os Litvaks da Lituânia, os Galitzers da Galícia, os Krimchaks da Crimeia, os judeus da Alsácia, e os Yekkes, judeus alemães. Outros grupos importantes são os sefarditas, descendentes dos judeus da Península Ibérica, como os judeus marroquinos, os chuetas das Ilhas Baleares e os hebraicos da Amazônia. Além disso, os Romaniotes, judeus gregos, e os Gruzinim, judeus da Geórgia, também fazem parte desse vasto mosaico. Os Mizrahi, judeus do Oriente Médio e Norte da África, incluem os judeus curdos, iemenitas, libaneses, sírios, persas e egípcios. A comunidade judaica também se estende à Ásia, com grupos como os Bene Israel e os Bnei Menashe da Índia, os Judeus Bukharan da Ásia Central, e os judeus chineses. Na África, os Beta Israel da Etiópia, os Abayudaya de Uganda e os judeus de Tombuctu no Mali são exemplos de comunidades vibrantes. Além desses, há os judeus indígenas de Venta Prieta no México e os judeus incas no Peru e Equador, que ilustram a amplitude geográfica e cultural do judaísmo.
Se há um grupo judaico com visibilidade praticamente inexistente, são os judeus negros brasileiros. No Brasil, estima-se que há mais de 5.000 judeus negros. Apesar disso, a pluralidade dessa comunidade é ignorada, enquanto símbolos judaicos são frequentemente apropriados por grupos radicais, que distorcem a verdadeira diversidade do judaísmo. Em Israel, por exemplo, 2,2% da população é formada por judeus negros, como os etíopes, que ocupam posições de destaque. No continente africano, há comunidades judaicas espalhadas, Nigéria, Uganda e Zimbábue são três exemplos de países com comunidades judaicas fortes, reforçando que ser judeu não está ligado a tom de pele. Dessa forma, reconhecer a presença dos judeus negros no Brasil e no mundo é fundamental para desmistificar a ideia de que o povo judeu é homogêneo. O judaísmo, ao contrário, é um mosaico cultural e religioso, onde a negritude encontra sua expressão, seja nas tradições religiosas ou nos itens culturais, como as kipás feitas por judeus de Uganda. Ser judeu também é, para muitos, uma forma de se manifestar que compõe judeidade e negritude.
Pensando em jogar luz sobre os judeus negros brasileiros e a diversidade judaica, a Faculdade de Direito da USP recebeu na noite na terça-feira (1/10) o evento “Interseccionalidades e Judeidade”. A atividade foi organizada pelo projeto judaico educacional socioambiental Zerah Platform em parceria com a disciplina de pós-graduação “Gênero e Etnia”, que ao longo de sua história explora as múltiplas identidades da população brasileira, com foco em suas interseccionalidades. Neste ano de 2024, o tema central foi a identidade judaica e sua diversidade. Entre os palestrantes, estavam a professora Denise Hochbaum, professora convidada na Universidade de Maryland, o doutorando da UFRGS Fercho Marquéz-Elul, autor do livro Timo da Editora Huracay, e Ana Beatriz Prudente Alckmin, presidente do projeto Zerah Platform e pedagoga.
Os palestrantes falaram sobre a complexidade das identidades judaicas, destacando como a vivência do antissemitismo atravessa todas essas identidades, como o racismo, esclarecendo que o antissemitismo é uma categoria de racismo. Discutiram a percepção social de que judeus são sempre vistos como ricos e privilegiados, e como essa visão superficial ignora as trajetórias ancestrais e a diversidade dentro das comunidades judaicas. Refletiram sobre a invisibilidade dos judeus negros e como a própria linguagem frequentemente não reconhece sua presença. Ressaltaram que, nas discussões sobre a população negra no Brasil, a existência de judeus negros é quase sempre ignorada, o que acaba privando os judeus negros brasileiros de espaço para discutir e expressar sua identidade nos ambientes voltados a questões raciais. Também abordaram a pluralidade de expressões culturais judaicas ao redor do mundo, incluindo a produção cinematográfica em Israel e as experiências da comunidade etíope, reforçando a necessidade de reconhecer a história dos grupos judaicos. Dessa forma, o debate trouxe à tona a importância de se examinar criticamente essas questões para uma compreensão mais profunda e inclusiva da identidade judaica, propondo que o conhecimento das pessoas sobre a diversidade judaica é um passo importante na construção de uma educação que tenha como intuito o combate ao antissemitismo.
O evento transcorreu com muita normalidade, felizmente frustrando aqueles que imaginavam que enfrentaria resistência ou algum tipo de manifestação de intolerância. Muito pelo contrário, o público exerceu muita escuta, e muitas dúvidas foram esclarecidas, deixando claro que até pessoas com um nível de formação muito alto ainda têm muitas dúvidas sobre judaísmo, diversidade judaica e estão dispostas a desconstruir estereótipos. Uma aluna da pós-graduação perguntou sobre a relação do judaísmo com a maçonaria, e os três palestrantes explicaram que essa relação não existe, sendo uma narrativa antissemita que permeia a internet através de fake news. Muitas perguntas sobre narrativas antissemitas foram feitas, o que mostra que o público presente estava realmente ansioso para esclarecer suas dúvidas e muito aberto a compreender o que é a diversidade dentro do mundo judaico e o que é o antissemitismo.
Em entrevista, Georgia Cerbone Barroso, presidente da Comissão de Advocacia Sênior da OAB São Paulo – Subseção Tatuapé, aluna da disciplina “Gênero e Etnia” compartilhou suas impressões sobre a aula. Ela destacou a experiência enriquecedora que teve ao ouvir os professores Fercho Marquéz-Elul, Denise Hochbaum e Ana Beatriz Prudente Alckmin, elogiando a clareza e a diversidade do conteúdo abordado. Georgia achou a aula elucidativa e reconheceu que a quantidade de informações pode ser desafiadora para quem não está familiarizado com o assunto, mas elogiou a acessibilidade do vocabulário e a vivência dos professores, que trouxeram diferentes perspectivas à discussão, desde a história das sinagogas até a realidade dos judeus negros no mundo. Ela enfatizou a importância de se aprofundar em temas como o antissemitismo e as escolhas individuais dentro da religião, ressaltando a necessidade de mais aulas sobre o assunto, dado o interesse gerado e as muitas perguntas que surgiram. Georgia ainda disse: “Foi incrível perceber como o judaísmo é diverso e que, em cada canto do mundo, há histórias e práticas que nos surpreendem. Isso nos faz ver além dos estereótipos e entender a verdadeira riqueza dessa cultura.”
Ao entrevistarmos a presidente do projeto educacional Zerah Platform, Ana Beatriz Prudente Alckmin, ela falou sobre a importância desse evento: “No momento no qual o Brasil vive o ápice do antissemitismo, no século XXI, é muito importante ter esse espaço para falar sobre diversidade judaica e principalmente falar sobre judeus negros. Hoje nós fizemos história aqui, porque pela primeira vez na história da Universidade de São Paulo tivemos um evento em que Judeidade e Negritude foram o ponto central e tivemos judeus negros falando sobre ser judeu negro. Eu estou muito emocionada e não consigo falar mais do que isso porque nós realmente construímos aqui um marco na história dos estudos sobre judeus negros brasileiros.”
Este evento “Interseccionalidades e Judeidade” foi o primeiro evento da história da Universidade de São Paulo que teve como questão central os judeus negros brasileiros, por isso é um evento histórico.
Participação da CONIB
A Confederação Israelita do Brasil (CONIB) é a entidade que representa e coordena a comunidade judaica no país, atuando para garantir seus direitos e promover seu bem-estar. Além de zelar pela continuidade e desenvolvimento do judaísmo no Brasil, a CONIB também busca preservar e difundir a herança espiritual, cultural e social da comunidade. A instituição se envolve em questões de defesa contra o antissemitismo, diálogo inter-religioso e promoção da diversidade, além de apoiar causas de interesse da comunidade judaica em diferentes áreas.
A CONIB se fez presente no evento através da distribuição de seu livro. Há um projeto literário da CONIB que se chama Cadernos Conib, e dentro dessa coleção tem a primeira publicação feita por uma entidade judaica oficial do Brasil sobre questões étnico-raciais e judaísmo. A obra se chama justamente "Questões étnico-raciais e judaísmo". A comissão editorial que fez essa edição foi composta por Ruth Goldberg, Sergio Malbergier, Sérgio Akon, Gita Guinsburg e Sérgio Maia. O livro foi distribuído para todas as pessoas que estavam no evento. Entre os autores que escreveram o livro estão Braulina Baniwa, indígena e antropóloga, mestre em Antropologia Social pela UnB, ativista em defesa dos direitos indígenas, das mulheres e do meio ambiente; Lilian Starobinas, doutora em Educação e mestre em História pela USP, professora e pesquisadora nas áreas de história, cultura e educação; e Flávia Rios, socióloga e diretora do Instituto de Ciências Humanas e Filosofia da UFF, além de coordenadora de projetos de igualdade racial. Entre outros autores, o livro reúne uma rica diversidade de perspectivas que abordam questões étnico-raciais e o judaísmo.
A distribuição do livro foi gratuita e todos os alunos que assistiram ao evento receberam um exemplar.