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AGÔ, a palavra de Exú é resistência - por Dandara Tonantzin

Leia o artigo da deputada federal Dandara Tonantzin (PT-MG) para a Fórum

Dandara Tonantzin é a mais jovem negra deputada federal (PT/MG)Créditos: Matheus Alves
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AGÔ significa “licença pra falar” e esse diálogo interreligioso demanda em sua essência uma comunicação eficaz com o axé de Exú, divindade Iorubá da comunicação, que nos ensina e assume um papel central nesse contexto. Embora seja ironicamente mal compreendido e estigmatizado dentro do panteão religioso afro-brasileiro, Exú não é o diabo, mas a comunicação por si só. Então vamos escutar um pouco da palavra de exú!

Durante o período colonial, a diáspora africana trouxe cerca de 37% da população escravizada para o Brasil, moldando significativamente a composição genética do país (ELTIS; BEHREND; RICHARDSON, 2000). Hoje, uma considerável parcela da população brasileira carrega traços de ascendência africana em sua linhagem genética, no entanto, muitos desconhecem as riquezas das raízes científicas, religiosas e culturais africanas. Lamentavelmente, essas tradições são frequentemente desvalorizadas, recriminadas e alvo de agressões por parte de alguns setores de religiosos extremistas, perpetuando um ciclo de falta de compreensão e respeito pela diversidade religiosa e cultural.

Essa tensão se manifesta em diversas esferas da sociedade e do Estado, incluindo o sistema legislativo e  jurídico, como evidenciado na tentativa de proibição legal do uso de animais em rituais de religiões de matriz africana e as perseguições a praticantes das religiosidades. A elaboração de discursos por parte de agentes religiosos de diferentes credos alimenta e valida a intolerância religiosa, muitas vezes resultando em ações governamentais (LEISTNER; AGUIAR, 2020). A intolerância é definida como uma forma de opressão que decorre da falta de reconhecimento da diversidade, que constitui uma sociedade, onde o outro não é respeitado em virtude de atributos que o diferenciam, como a sua religião (REIS; LOPES, 2017).

É fundamental ressaltar que em 1988, por meio da Constituição Federal de redemocratização, o Brasil se estabeleceu como uma nação laica, comprometida com a liberdade religiosa, com o propósito de assegurar a separação da influência religiosa nas políticas estatais, na cultura e na educação. Um Estado laico, por definição, não possui uma religião oficial, fomenta a coexistência harmoniosa entre diversas crenças e está empenhado em combater a intolerância religiosa. Até a década de 1970, os locais de prática da religião afro-brasileira Candomblé eram frequentemente alvo de repressões por parte da polícia, indicando que a intolerância não era apenas proveniente de outras correntes religiosas, mas também do próprio Estado (JUNQUEIRA; REIS, 2020).

A interação entre diferentes religiões é crucial para criar um ambiente verdadeiramente seguro, onde cada indivíduo e comunidade possam livremente expressar sua fé. A liberdade religiosa só é genuína quando os direitos humanos são respeitados, proporcionando às pessoas o conforto de fazerem suas escolhas espirituais. A promoção da tolerância religiosa deve ser um pilar essencial dos direitos humanos defendidos pelas políticas de um Estado democrático. A Declaração sobre a eliminação de todas as formas de intolerância e discriminação fundadas na religião ou nas convicções, proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1981, estabeleceu um referencial importante para orientar políticas que visam combater a intolerância. No entanto, no Brasil, ainda persistem resistências, especialmente em relação às religiões de matriz africana (BATISTA et al., 2017).

O fenômeno da intolerância religiosa tem raízes profundas na história da humanidade e persiste de maneira marcante na sociedade contemporânea. Independentemente do local ou classe social, a intolerância assume uma gravidade extrema, manifestando-se por meio de ofensas, discriminação e ações que atingem aqueles que compartilham determinadas crenças. Segundo Von, "A intolerância religiosa fundamenta-se na crença de que uma religião é superior às demais ou detentora exclusiva da verdade absoluta." Os conflitos originados por divergências religiosas são evidentes, e a magnitude do problema é preocupante, representando um desafio significativo para a humanização da espécie humana, conforme observa Guimarães. Vejamos: 

A intolerância está na raiz das grandes tragédias mundiais. Foi ela que destruiu as culturas pré-colombianas e promoveu a inquisição e a caça às bruxas. Foi a intolerância religiosa que levou católicos e protestantes a se matarem mutuamente na Europa, ou hindus e muçulmanos a fazerem o mesmo na Índia. Foi à intolerância que levou países a construírem um sistema de apartheid ou a organizarem campos de concentração. Por trás de cada manifestação de barbárie, que a humanidade teve a infelicidade de assistir e testemunhar o que redundou em numerosos massacres e extermínios esconde-se a intolerância como arquétipo e estrutura fundante.

A sociedade brasileira, constituída por várias raças, culturas e religiões, permeia o preconceito manifestando toda forma de intolerância. Assim a intolerância religiosa é um conjunto de ideologias e atitudes ofensivas, discriminatórias e de desrespeito às diferentes crenças e práticas religiosas ou a quem não segue uma religião. Sendo um crime de ódio que fere a liberdade, a dignidade humana e a própria democracia, a intolerância religiosa costuma ser caracterizada pela ofensa, discriminação, perseguição, ataques, desqualificação e destruição de locais e símbolos sagrados, roupas e objetos ritualísticos, imagens, divindades, hábitos e práticas religiosas. Em casos extremos, há atos de violência física e que atentam à vida de um determinado grupo que tem em comum determinada crença.

O nosso mandato tem compromisso incansável com a defesa da liberdade religiosa para que todas as pessoas possam ter o direito de expressar e cultuar sua fé sem que sejam perseguidas. Proteger as religiões de matriz africana é proteger a história do povo negro brasileiro que foi sucumbido em todos os seus aspectos. E, sabemos, que a religiosidade até hoje se mantém viva porque foi a principal ferramenta de organização contra a escravização no Brasil. Seguiremos sempre saudando Exú e agradecendo por nos dar a oportunidade de comunicar e seguir lutando contra o preconceito!

Laroey!

*Dandara Tonantzin é a mais jovem negra deputada federal (PT/MG). Faz parte da nova geração de lideranças políticas que ocupa a Câmara Federal. Cotista tanto na graduação quanto no mestrado, foi a relatora da Nova Lei de Cotas, aprovada e sancionada. É militante do movimento negro e tem uma trajetória como ativista social ligada à luta em defesa das mulheres, do povo que vive nas periferias e da comunidade LGBTQIA+.

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