DIVERSIDADE

Chegada da primavera e o racismo no 1º Festival de Cultura Geek - Por Mateus Muradas

É possível existir uma floresta diversa, como é o nosso povo, mas, para isso, a erva daninha do racismo precisa ser extirpada

A estátua de Madrinha Eunice.Créditos: Rovena Rosa/Agência Brasil
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No dia 17 de setembro de 2023 aconteceu o 1º Festival de Cultura Geek na Praça da Liberdade, em São Paulo. O evento foi apoiado por uma série de entidade ligadas às culturas geek e japonesa, pela prefeitura de São Paulo e promovido pela Associação Brasil Nippo. Seria lindo não fosse o fato de a organização ter instalado o palco em cima da escultura de Madrinha Eunice, causando profundo constrangimento, dado o desrespeito à comunidade negra de São Paulo.

A estátua não está no bairro da Liberdade à toa. Madrinha Eunice foi fundadora de uma das mais antigas escolas de samba de São Paulo, a Lavapés, em 1937.

Após a polêmica que os governos Doria-Covas-Nunes criaram ao mudar o nome do metrô Liberdade para Japão-Liberdade, houve uma tentativa de conter este apagamento histórico, ao rememorar Madrinha Eunice e saudar a história negra do bairro da Liberdade. Porém, a tentativa de apagamento histórico, sobre esta questão, não para por aí.

O bairro da Liberdade recebeu este nome em memória de Francisco José das Chagas, o Chaguinhas, soldado negro do exército brasileiro, que exigia pagamento de soldos atrasados e tratamento igual entre soldados brasileiros e portugueses. No dia 20 de setembro de 1821, Chaguinhas foi morto a pauladas após três tentativas fracassadas de enforcamento na Praça da Liberdade. Era tradição na época, quando o enforcamento falhasse, o preso ser solto. Foi então que o povo gritou “Liberdade, Liberdade”, para o caso de Chaguinhas, e assim se deu o nome do bairro.

É lamentável que na mesma semana de memória da morte de Chaguinhas, seja feita uma desonra tão grande, com a comunidade negra, quanto esta propagada pelos organizadores do Festival Geek, ao esconderem a escultura de Madrinha Eunice. Isso traz a alusão de que a orientalização do bairro da Liberdade e o consequente apagamento histórico das comunidades negras é um projeto.

A partir da década de 70, teve início um movimento urbanístico em São Paulo, de copiar as Chinatowns e Little Tokyos estadunidenses, quando foram implantadas as lanternas Suzuranto, esculturas, monumentos e também a Floresta das Cerejeiras no Parque do Carmo, maior floresta de Sakuras fora do Japão. Desde então, houve um movimento de orientalização do bairro da Liberdade e outros cantos da cidade, e o consequente apagamento histórico, em especial da memória da comunidade negra.

A partir do governo Doria, de 2017 até os dias atuais, começou mais uma onda de orientalização, quando o nome do metrô Liberdade foi alterado, além de ser ventilada a hipótese de concessão do Parque do Carmo à Associação Sakura-Ipê, sendo que uma das ideias seria expandir ainda mais a floresta de Cerejeiras, o que traria como consequência a derrubada de árvores nativas. É neste contexto, que o racismo do Festival de Cultura Geek se encaixa.

Na contramão deste movimento, outros grupos sociais se mobilizaram contra esse apagamento histórico e essa tentativa de orientalização do bairro da Liberdade.

Com a chegada da primavera, outras flores e outras histórias começam a ser afirmadas. O Projeto Camélia e Coletivo Amarelitude lançou um manifesto, no dia 1º de setembro, em apoio à implementação do Memorial dos Aflitos, que resgatará a história negra e indígena do bairro da Liberdade.

Na mesma toada afirmativa, em novembro de 2022, após a polêmica da concessão do Parque do Carmo, o movimento negro representado pela Associação Fala Negão, Fala Mulher tentou plantar, não uma floresta enorme, mas uma simples muda de Baobá no Parque do Carmo, mas infelizmente, por falta de cuidados da prefeitura, não vingou.

A Camélia branca foi a flor escolhida pelos abolicionistas brasileiros para representar a luta contra o fim da escravidão de negros. Ao mesmo tempo, a flor é escolhida por seitas da Ku Klux Klan, além do nome da planta ser uma homenagem ao jesuíta, George Kamel. A companhia jesuíta atuou na colonização e escravização de amarelos nas Filipinas, pelos Impérios Espanhóis e Portugueses, nos séculos XVI e XVII. A louvação a Baobá simboliza para o movimento negro o fortalecimento dos laços dos descendentes de africanos com África. E, por fim, a contemplação das cerejeiras é uma tradição japonesa, de celebração do efêmero, assim como a vida de um samurai e brevidade da vida.

Este apagamento!

Fez surgir a nova ideia

Memória a aflorar.

É possível um novo mundo, em que Baobás, Camélias e Cerejeiras convivam em harmonia, também com os Ipês (plantas nativas). Mas, para que realmente haja uma nova primavera, é necessário repudiar veementemente atitudes racistas como essas propagadas no Festival Geek. Iniciativas como o Projeto Camélia e do Coletivo Amarelitude jogam luz e esperança para o resgate de nossa memória. Uma memória que contemple a amplitude da diversidade brasileira, branca, amarela, indígena, negra e mestiça. É possível existir uma floresta diversa, como é o nosso povo, mas, para isso, a erva daninha do racismo precisa ser extirpada.

*Mateus Muradas é poeta, integrante do Fórum Social da Zona Leste e conselheiro municipal de políticas urbanas.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.