A transição energética global abre oportunidades únicas para o Brasil. O mundo passa atualmente por grande transformação energética com o objetivo de combater o irreversível aquecimento global. Nesse contexto, o hidrogênio verde (H2V) surge como protagonista nesta transformação, sendo apontado por especialistas como a principal fonte de energia do futuro. E o Brasil, com sua matriz energética majoritariamente renovável e uma vantagem estratégica ímpar, reúne todas as condições para se tornar um dos principais produtores mundiais de hidrogênio verde.
A transição energética já foi iniciada na maioria dos países desenvolvidos e terá impactos profundos na geografia e na economia da produção global de energia. Os combustíveis fósseis deixarão de ser a fonte principal de energia da humanidade e serão substituídos por fontes renováveis e ambientalmente sustentáveis, como o hidrogênio verde, a principal aposta do G7 e das Nações Unidas para a descarbonização mundial e a transição energética.
Pela sua dimensão econômica, a transição energética atual sem precedentes abriu espaço para uma verdadeira nova corrida industrial. As principais economias do mundo preparam-se vigorosamente para competir pela primazia na produção de hidrogênio verde. Trata-se, provavelmente, da competição pelo negócio mais lucrativo da humanidade, em futuro próximo. Para se ter uma noção aproximada do valor potencial desse mercado, os lucros totais de nove das maiores empresas de energia do mundo totalizaram em 2022 a impressionante marca de R$ 2.2 trilhões.
O hidrogênio verde é uma fonte de energia versátil, podendo ser aplicado em diversos setores para substituir combustíveis fósseis, carvão ou gás, tanto na indústria quanto nos transportes. Sua obtenção por meio da eletrólise da água, utilizando fontes renováveis como eólica e fotovoltaica, garante a sustentabilidade do processo. Além disso, o hidrogênio verde pode ser facilmente armazenado e transportado por longas distâncias, viabilizando sua produção em diferentes regiões do Brasil e sua exportação para os centros consumidores.
Os principais países do mundo já lançaram enormes pacotes de apoio estatal para o desenvolvimento de indústria local competitiva no setor de hidrogênio. O governo da Índia, por exemplo, aprovou, em 2023, investimentos de cerca de R$ 11 bilhões em ambicioso plano denominado Missão Nacional de Hidrogênio Verde. A meta principal do programa é transformar a nação em um dos maiores produtores do planeta. Prevê-se, para essa finalidade, o desenvolvimento da capacidade de produção de pelo menos 5 MMT (milhões de toneladas métricas) de hidrogênio verde por ano, com uma adição de capacidade de energia renovável associada de cerca de 125 GW no país asiático, além de redução de quase 50 MMT de emissões anuais de gases de efeito estufa. Dois tipos de incentivos serão concedidos: para a fabricação de eletrolisadores e para a produção de H2V nos chamados “centros de hidrogênio”.
A Comissão Europeia, por sua vez, já apresentou a proposta “REPowerEU” com a meta de aumentar sua produção para 20 mil toneladas/ano de H2V até 2030. A nova estratégia prevê a instalação de estações de reabastecimento de H2V a cada 200 km nas principais rotas da Europa até 2030. Prevê, ademais, incentivos substantivos para a consolidação de uma base robusta de produção, distribuição de consumo. Como parte dessa iniciativa, a União Europeia decidiu banir a produção e venda de veículos movidos a gasolina ou diesel, a partir de 2035. Prenuncia-se que os carros elétricos e os movidos a hidrogênio verde os substituam. Os Estados Unidos, o Japão e a China lançaram igualmente programas robustos de subsídios ao setor que chegam às dezenas de bilhões de dólares norte-americanos.
Com matriz energética predominantemente composta por fontes renováveis, o Brasil possui capacidade única de produzir hidrogênio por meio de métodos ecologicamente corretos: nossa geração solar de energia cresce 15% ao ano e nosso potencial eólico pode chegar a 450 Giga Watts (GW). Além disso, 85% da nossa matriz energética já é de fontes renováveis (hidroelétrica, eólica, solar e biomassa). Essa abundância de energia limpa não apenas garante a produção de hidrogênio verde com custos competitivos, mas também posiciona o Brasil como destino atraente para investidores que buscam soluções sustentáveis. Esse diferencial competitivo singulariza o Brasil, pois 70% do custo de produção do H2V é o custo da energia renovável. Detentor de vastos recursos renováveis, o Brasil poderia liderar a transição para um futuro de baixo carbono, aproveitando a crescente demanda global por energia limpa e solidificando sua posição como um importante fornecedor de hidrogênio verde para os mercados internacionais.
Segundo a consultoria McKinsey, a demanda por descarbonização chegará aos 10 mil GW em 2050. Estima-se que serão necessários investimentos globais da ordem de US$ 5 trilhões por ano até 2030. O Brasil é hoje o sétimo pais em geração de energia, e fica apenas atrás da China e EUA em energia renovável. Nós podemos ficar com a maior fatia da geração de H2V, mas para isso precisamos de ousadia, determinação, planejamento e uma intensa mobilização nacional. Isso sem falar na demanda doméstica de H2V que pode chegar a US$ 20 bilhões/ano, em 2040.
Contudo, para que nossa vantagem estratégica comparativa se materialize será necessário a superação de diversos desafios de escala e tecnologia de produção, de custos, de infraestrutura e de marco legal regulatório, entre outros. Entre complexidade desses obstáculos estão as cadeias produtivas de máquinas e equipamentos que deverão ser nacionalizados; a implementação de políticas pública de fomento por meio dos bancos estatais e do potencial na geração de renda e empregos qualificados; e soluções criativas na liderança pública da mobilização nacional.
Assim como a Petrobrás e a Embrapa, criadas respectivamente em 1953 e1973, o Estado brasileiro precisa coordenar e liderar a arquitetura institucional para produção de hidrogênio verde. Um formato institucional baseado na articulação público-privada, liderado pelo governo federal, pode operar um fundo de desenvolvimento para investir nos gargalos já identificados: desenvolvimento tecnológico e a melhoria da logística e distribuição. Esse fundo poderia captar recursos dos países que precisam descarbonizar suas economias. Só a União Europeia está disposta a investir 2 bilhões de euro no mercado brasileiro. Tal organização faria a coordenação de instituições públicas de fomento, como o BNDES, a FINEP e a EMBRAPI, com apoio do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB), o Banco dos Brics. Tudo em sintonia com as diretrizes da Política de Neoindustrialização e as missões estabelecidas pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Industrial, o CNDI, recém recriado.
O Brasil não pode desperdiçar a enorme oportunidade de ser um dos maiores produtores da principal fonte de energia do futuro, o hidrogênio verde. Os investimentos na Petrobrás e na Embrapa revelaram que a Nação pode superar grandes desafios. Um mercado anual de dezenas de trilhões de reais, como será o futuro mercado de hidrogênio verde, não pode ser desperdiçado. Urge que sigamos os exemplos da União Europeia, da Índia e de vários outros países do G20: o Brasil necessita lançar rapidamente um plano nacional ambicioso de produção e exportação de hidrogênio verde e debater a urgência de parcerias do setor privado sob a liderança do setor público. Quando Vargas criou a Petrobras, após longa mobilização da UNE e da sociedade civil, dizia-se que “o petróleo é nosso”. Pois bem: o hidrogênio, combustível do futuro, também pode ser nosso.
*Jackson De Toni é analista de produtividade e inovação da Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial – ABDI e doutor em Ciência Política pela Universidade de Brasília (UnB). É economista e mestre em Planejamento Urbano e Regional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e professor de Políticas Públicas no IBMEC-DF, ENAP e IESB.
*Danilo Zimbres é diplomata de carreira e mestre em diplomacia. Atualmente lotado na Presidência da República, serviu na Alemanha, no Paraguai e na República Tcheca. No Brasil, chefiou a Assessoria Internacional do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação e a Assessoria Parlamentar do Ministério da Cultura.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.