O negacionismo não é fruto da estupidez e arrogância. O negacionismo é fruto do conhecimento, da ganância e do mau caratismo. Diante de tudo o que vemos e ouvimos nos últimos anos, especialmente com a pandemia, por vezes tentamos chancelar as ações da extrema direita como fruto da ignorância. Por vezes elas foram, é verdade. Mas episódios assim vieram de gente de status menor, se assim posso dizer. As lideranças sempre entenderam o que está em jogo e a negação da realidade é parte de uma estratégia de sobrevivência.
O antropólogo francês Bruno Latour (morto em 9/10/2022) defende com muita propriedade em seu penúltimo livro publicado no Brasil que o problema de nosso tempo são as mudanças climáticas e a consequente dificuldade em sobrevivermos em um planeta em colapso. E assim, todas as questões político-econômicas são atravessadas pelas profundas mudanças climáticas que estamos passando nesse novo regime climático. E são problemas do nosso tempo porque, obviamente, não encontrando solução para nossa sobrevivência, o tempo que temos será só mesmo o tempo atual.
Bem, embora Latour já viesse defendendo isso há algum tempo, no livro “Onde aterrar? Como se orientar politicamente no Antropoceno”, escrito logo após a eleição de Donald Trump, ele dá conta de apontar quando e como as grandes potências mundiais, especialmente os Estados Unidos, passaram a ignorar as transformações pelas quais estamos passando nas últimas décadas. Transformações essas que levarão à derrocada do planeta Terra se nada for feito.
Não é segredo algum que os Estados Unidos são um dos maiores poluidores e um dos maiores consumidores de combustíveis fósseis e de demais recursos naturais do mundo. No entanto, Latour afirma que a certeza de que, enquanto nação, eles consideram viver em um outro mundo que não o nosso de meros mortais, se deu quando Trump retirou o país do Acordo de Paris. Vale lembrar que em 1992 na ECO92, Bush ‘pai’ já havia afirmado que o modo de vida americano não era negociável.
Com a ascensão de Bolsonaro à Presidência da República vimos o discurso negacionista ascender também, tal qual o de Trump e seus seguidores. O governo passado negou a ciência, negou fatos, negou a pandemia, negou a vacina e continuou negando que fizesse algum mal para o país e para o planeta. Além de produzir mentiras cotidianamente sobre os mais diversos temas, o que, é claro, a extrema direita continua fazendo independente da derrota de Bolsonaro. Exemplos podem ser vistos diariamente: semana passada o MBL tuitou que “Lula aprovou o aborto e mudança de sexo”.
Algumas questões precisam ser postas aqui: como é que esses governos/organizações políticas/partidos políticos conseguem negar veementemente estudos e mais estudos científicos que demonstram desde os anos 90 que podemos colapsar e que a destruição de ecossistemas coloca nossa vida em risco de extinção? Como é que afirmam categoricamente ser pura balela os estudos que demonstram que o uso dos recursos naturais pode levar o planeta Terra à exaustão e sua destruição? Que são invencionices de gente exagerada? Como negam tudo isso?
Pois bem, o truque está aí: essa gente, chamada de elites obscurantistas por Latour, cujos exemplares temos às pencas em nosso país, inclusive presidindo a CPI do MST, sabe da realidade que nos espera. Essa gente tem certeza de que tais recursos são finitos, e compreendem que a Terra será de poucos daqui pra frente. Reconhecem em silêncio que os pesquisadores estão certos e, justamente por isso, resolveram estrategicamente negar a realidade.
O negacionismo é a forma encontrada por essa elite obscurantista para garantir o máximo de conforto para poucos numa terra devastada, daí a ganância. Negar as mudanças climáticas possibilita à essa gente não ter nenhum pudor para “ir passando a boiada, ir mudando todo o regramento, ir simplificando normas”, mau caratismo? Essa frase foi dita por Ricardo Salles, então Ministro do Meio Ambiente e atual Presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito contra o MST.
Alguns elementos que o antropólogo francês nos traz embasa essa discussão de uma forma muito clara. Embora, vale lembrar, esse livro foi escrito antes de Bolsonaro ser eleito.
Um desses elementos é a desregulação. Como colocou Salles, era preciso derrubar todos os impeditivos ambientais e vimos isso com muita audácia em todo o período bolsonarista: aprovação de 2182 agrotóxicos; nenhuma demarcação de terra indígena; projetos de lei para mineração em terra indígena; mineração ilegal em terra indígena culminando na tragédia Yanomami que veio à público logo após a posse do Presidente Lula; aumento vertiginoso de desmatamento na Amazônia nos anos de governo de Bolsonaro; a tese do Marco Temporal... enfim, são muitos os exemplos que corroboram o que coloca Bruno Latour, de que essas elites não precisam “mais fingir compartilhar a terra com o resto do mundo, nem mesmo como um sonho a perseguir.”
Uma vez que não precisam mais fingir, abandonaram qualquer princípio de solidariedade, construindo uma fortaleza para aqueles que conseguirão se safar, o que só produz mais desigualdade. Basta ver os dados alarmantes da pobreza durante a pandemia: em 2022, 33 milhões de brasileiros passando fome, 14 milhões a mais que em 2021, conforme dados do 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19. No entanto, no mesmo período, 59 mil brasileiros se tornaram super-ricos, somando-se aos cerca de 200 mil já super-ricos em 2021 (super-ricos são pessoas com fortunas estimadas em US$50 milhões). O governo Bolsonaro negou vacina – porque é parte desse processo negacionista – protelou o quanto pode o pagamento do auxílio emergencial de meros R$400,00 e negou a tragédia humanitária que nos abateu.
Mas, onde entra o MST aqui?
Pois bem, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra representa tudo aquilo que essa gente, cujo perfil já foi explicitado anteriormente, repudia. Sem nenhum objeto de investigação, a CPI foi aberta porque essa gente é contrária a tudo o que o MST representa. Não é só a ocupação de terras da elite improdutiva o que incomoda essa gente, isso é só fachada! O que realmente incomoda é o projeto de um outro mundo que o MST vem elaborando a partir da Reforma Agrária Popular.
Tal projeto não se limita às áreas de assentamento ou acampamento não! É um projeto para o Brasil, é um projeto para outra realidade possível.
Nessa realidade, há abundância na produção de alimentos saudáveis, em contraponto à abundância de agrotóxicos aprovados pelo governo passado. Nessa realidade, a solidariedade, que pode ser traduzida na doação de alimentos para quem tem fome, é um princípio básico de existência: durante os anos de pandemia o MST doou mais de 7 mil toneladas de alimentos. Nessa realidade, a escola não reproduz a desigualdade da sociedade, ela proporciona o entendimento da origem das desigualdades e propõe a construção de outra forma de conhecimento. Nessa realidade, existe outro modo de produção da vida material que não o capitalismo: é o modo de produção agroecológico. Nessa realidade as questões climáticas tem lugar de destaque e os Sem Terra já plantaram mais de 10 milhões de árvores desde que a campanha pelo plantio de 100 milhões de arvores começou, em 2020. Nessa realidade, o individualismo e a propriedade privada dos meios de produção não são a essência: o que vale são os interesses coletivos e a cooperação. Nessa realidade, as mortes por Covid podiam ter sido evitadas com a adesão de protocolos de cuidados como o elaborado pelo Movimento, cuja taxa de mortalidade em suas áreas foi 60 vezes menor que nas grandes cidades. Nessa realidade, rios, nascentes, lagos e o solo são seres vivos também e há o entendimento de que juntos temos a garantia de nossa sobrevivência, de todos nós e não apenas de alguns poucos privilegiados pelo dinheiro.
O MST incomoda tanto essa gente porque oferece condições reais de sobrevivência para a humanidade. Parece que mais uma CPI sobre o Movimento vai chegar ao fim. Mas a intenção de criminalizar os movimentos sociais, especialmente o MST, não vai parar enquanto cada um de nós não compreender que temos pouco tempo para garantir nossa sobrevivência ou das futuras gerações.
*Luciana de Matos Rudi é antropóloga e realiza pesquisa de doutorado sobre o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra pela Universidade Federal de São Carlos
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