O primeiro texto que tive a oportunidade de escrever nesse espaço trouxe um termo que foi questionado por algumas pessoas que se preocupam com as intervenções na infância. É o termo "criança trans".
É importante sempre utilizar termos que correspondam à realidade.
Em relação à "infância trans", podemos fazer uso de uma linguagem que descreve a infância ou que coloca nela um rótulo. No texto usei ambas, e por isso, ficou dúbio; não respondi diretamente a seguinte pergunta: criança trans existe?
Mas vamos responder.
"Criança trans" NÃO existe enquanto uma categoria de crianças que está no corpo errado.
"Criança trans" existe enquanto um grupo de crianças cujos adultos assim a nomeiam.
Então, em termos de "existir", da mesma forma que podemos afirmar que crianças brancas e pretas existem, afirmo: não existe "criança trans" e não existe "criança cis".
Porque, diferente de uma questão de raça, que tem critérios materiais e históricos indissociáveis, criança "trans" nada mais é do que um rótulo que se coloca quando pessoas ao redor dessa criança leem seus comportamentos, suas preferências e suas falas como tendo alguma relação com 'coisa de menino' e 'coisa de menina'. E a gente trabalha para eliminar essa ideia de que meninos vestem azul e meninas vestem rosa, não é?
Por isso, no Movimento Infância Plena, nós questionamos o olhar adultocêntrico para as expressões das crianças. Compreendemos que o uso das palavras têm consequências e que elas devem buscar corresponder a realidade e não negá-la, ocultá-la ou distorcê-la.
Quem já leu o livro 1984 lembra bem a referência. George Orwell nos mostra o poder da linguagem sob controle do Estado, que reescreve a história, refaz significados e acomoda ideias incompatíveis nas palavras, que eles chamam de duplipensar. A "linguagem trans" tem em seu cerne essa acomodação de uma afirmação e negação: o que é chamado de afirmação de gênero implica na negação da realidade corporal.
Crianças que não desempenham papéis tradicionais já estão transgredindo tais rótulos. E é um bom sinal que uma criança não esteja presa a tantas regras sociais restritivas.
Só que disso não decorre afirmar que elas estão no corpo errado. Que é uma menina que nasceu no corpo de menino, e vice-versa, que sua genitália não corresponde a sua mente. Porque não há nada "a corresponder".
O que deve ser feito para "afirmar e apoiar a criança no gênero expresso", como diz o DSM-5, é AFIRMAR que NÃO há problema em suas preferências de roupas, aparência, comportamentos e sentimentos e nem com seus corpos saudáveis.
É orientar para que meninas e meninos possam explorar o mundo da forma que for melhor para seu desenvolvimento, e que sua condição sexual não seja um fator limitante nem determinante desse desenvolvimento.
Que não se renomeie sua identidade negando seus corpos, inserindo termos incompatíveis como "penis feminino" e outros termos violentos que geram confusão sobre o corpo, e obviamente, angústia à criança.
Em casos atendidos por psicólogos e outros profissionais, há o relato de atendimento de crianças dizendo que queriam extirpar seu pênis, tamanha era a angústia de estar no corpo errado. E que isso seria a prova de que elas seriam trans.
Ora, isso NÃO é um alerta de que a criança está no corpo errado.
Ao contrário, é um alerta de que essa criança não está sendo auxiliada a lidar com o corpo que tem, que ela está em conflito com os sinais sociais que lhe passam, sobre o que é ter um corpo de menino e de menina.
Uma criança que chega a esse ponto de querer se mutilar só indica o quanto esse duplipensar já está afetando nossos pequenos. Além disso, é grave que não se investigue fortemente sinais de abuso sexual em casos assim. Rejeição corporal é um grande alerta para pessoas que passam por tal tipo de violência, em todas as idades.
Vamos combater o duplipensar:
Não é afirmativo dizer que uma criança nasceu no corpo errado.
Não é cuidado dizer que ela precisa fazer modificações corporais e sociais para ajustar-se às expectativas sociais.
Não se ensina aceitação ao dizer a uma criança que ela precisa "transicionar" para se sentir feliz. Isso só ensina a ela a se odiar.
Nenhuma criança nasceu no corpo errado, e adultos deveriam estar ensinando que elas são perfeitas do jeito que são.
*Celina Luci Lazzari é Psicanalista, mestre em Psicologia, doutoranda em Serviço Social e integrante do Movimento pela Infância Plena
**Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.