REFLEXÃO

Além de equivocada, a visão de Alberto Cantalice está fadada ao fracasso – Por Rodrigo Veloso

Florestan Fernandes estudou o capitalismo brasileiro e demonstrou como a sua formação local foi agregando aspectos da colonialidade

Alberto Fernández e Gabriel Boric.Créditos: Governos da Argentina e do Chile
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Alberto Cantalice causou perplexidade em muitos de nós, do mesmo campo político que ele, ao proferir ataques radicais contra países da região que são parceiros do Brasil e alinhados à esquerda.

Para quem não viu, este domingo (5), ele publicou no Twitter que os presidentes da Venezuela, Nicolás Maduro, e da Nicarágua, Daniel Ortega, são “protoditadores”, que têm “muita semelhança” com Bolsonaro. E que apenas Gabriel Boric (Chile), Lula, Alberto Fernández (Argentina) e Gustavo Petro (Colômbia) são democratas em nosso continente latino-americano. Além de outros ataques contra mais figuras emblemáticas da esquerda socialista, sempre sugerindo que a esquerda liberal é moralmente superior.

Bom, primeiro é importante que se esclareça que o que nos causa perplexidade não é o fato de que estas opiniões são dirigidas contra lideranças da esquerda. O nosso problema com esse ponto de vista é que ele representa um viés de interpretação eurocêntrico, liberal, que, na história da América Latina, sempre foi genuinamente o dos colonizadores racistas.

Afinal, fantasiar que um país como o Brasil, com uma realidade tal qual é a nossa, herdeiro de um sistema de escravização em massa que foi apenas substituído por uma política de substituição das pessoas negras no trabalho por colonos estrangeiros, poderá se espelhar em uma esquerda outra, que não seja a latino-americana, tipo francesa ou americana, justamente os países que se beneficiaram da exploração colonial no Terceiro Mundo, sempre foi um delírio e muito típico daqueles que não compreendem os problemas objetivos, a realidade concreta, com que temos que lidar para superar as desigualdades.

Acreditar que as demandas de classe ou gênero da esquerda europeia ou norte-americana podem ser simplesmente transformadas em nossas é, acima de tudo, ignorar que existe um sistema anterior de trocas desiguais no comércio internacional que deixa para nós (muito mais) o trabalho repetitivo, braçal, de baixo valor agregado, enquanto preserva para as metrópoles do Norte o trabalho criativo, intelectual e com altas taxas de lucro.

Florestan Fernandes foi um dos intelectuais que melhor explicou esse assunto. Ele estudou o capitalismo brasileiro e demonstrou como a sua formação local foi agregando aspectos da colonialidade. Profissões racializadas, quase sempre exercidas por pessoas brancas; tarefas como as de porteiros ou empregadas domésticas que mal existem nos países colonizadores; uma distribuição desigual do prestígio social que, ao mesmo tempo, hipervaloriza as pessoas brancas, enquanto desvaloriza as pessoas negras e indígenas.

Ele demonstrou, ainda, o significado de termos um capitalismo-dependente, cuja economia foi inicialmente 100% voltada à exportação e ao atendimento das necessidades dos europeus. E que, depois, com a chegada de mais europeus aqui, tornou-se um sistema produtivo apenas com média complexidade e para atender um pequeno mercado consumidor, espremido em poucas áreas mais ricas. Ou seja, não houve interesse em transformar os trabalhadores negros e indígenas em consumidores de produtos de maior valor agregado, pois primeiro optou-se pela escravização - diferentemente do que pregavam os liberais ingleses – e, depois, optou-se por altas taxas de desemprego e por salários baixíssimos, que seriam suficientes apenas para subsistência.

E, como explicaram outros diversos intelectuais latino-americanos, a exemplo de Alberto Quijano e Maria Lugones, o que ocorreu no restante da América Latina foi praticamente o mesmo. Espanha e Portugal tinham a mesma política de exploração, que depois foi substituída pelos ingleses e americanos - e a dinâmica que se seguiu às respectivas declarações de independência, atravessada por golpes militares apoiados pelas antigas metrópoles, não permitiu uma alteração substantiva no papel global desempenhado pela região ou a sua mobilidade em termos da relação com os países mais ricos. O Brasil é o maior exportador mundial de soja, e o segundo é a Argentina, para citar só um dado.

Bem, é por isso que nós estamos olhando principalmente para eles, nossos vizinhos, quando sonhamos com uma vida melhor para os brasileiros. Nós enxergamos neles as dificuldades que nós também temos. E é daí que partimos para proposta de uma união maior, e que seja capaz de acumular a força necessária para se contrapor ao peso dos instrumentos que os outros países e regiões ainda têm para nos subordinar.

O companheiro Alberto Cantalice, francamente, já deveria saber que qualquer governo na América Latina que ousar desafiar a ordem mundial será imediatamente retaliado. Ou acha que o PT receberia um tratamento melhor do que a Venezuela teve ao ousar um modelo de socialismo mais radical, baseado em orçamento participativo e gestão popular (através de comunas)? Ou acha que o PT receberia um tratamento melhor se fizesse como Cuba e, simplesmente, limitasse o poder do dinheiro na disputa eleitoral?

Ainda que não quisesse pensar em Hugo Chávez, Cristina Kirchner, Evo Morales, Rafael Correa, TODOS derrubados e condenados à prisão, deveria pelo menos lembrar de Lula na prisão e de Dilma derrubada com uso de grampos ilegais. O socialismo moderado, a social-democracia light que Lula conseguiu fazer já foi considerada inaceitável para os EUA, que apoiou um Golpe, e depois (mais) um regime fascista liderado pelo Bolsonaro.

Não há tempo para ser ingênuo a uma altura dessa, a ponto de achar que a Venezuela “quebrou” sem nenhuma colaboração das sanções draconianas que foram impostas a ela. É só ver como eles usam sanções contra todos os adversários com objetivo de causar os mesmos efeitos: miséria generalizada e convulsão social. Seria como acreditar que a Lava Jato não teve nenhuma influência norte-americana e que também não teve nenhum impacto no colapso da economia brasileira.

Se quiser entender melhor porque Gabriel Boric é o líder de esquerda com a popularidade mais baixa no Ocidente, e porque a Bolívia foi capaz recentemente de derrubar uma ditadura de direita com paus e pedras, e táticas de trincheira em mobilizações literalmente diárias nas ruas, o nobre dirigente da Fundação Perseu Abramo precisará de boa vontade para compreender mais a América Latina e mais que o socialismo, do lugar preciso onde estamos, ou será anticolonial ou estará fadado ao fracasso.

*Rodrigo Veloso é mestre em sociologia (UFF) e da Frente LGBTIA+ do Rio de Janeiro.

**Este artigo não não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.