Em uma cena de “John Wick 4: Baba Yagga” (dir. Chad Stahelski, 2023), dois renomados atores de ação se encontram. O chinês Donnie Yen, famoso pelas suas habilidades no Kung Fu, está prestes a “lutar” com Hiroyuki Sanada, ator japonês famoso por filmes como “O Último Samurai” (dir. Edward Zick, 2004). Como nos filmes de Akira Kurasawa, a sequência que antecede o duelo se prolonga: close-ups mostram os rostos tensos dos dois atores, suas falas persuasivas revelam o que está em jogo e os planos de conjunto constroem a tensão entre os dois guerreiros. A batalha entre eles é ágil e complexamente coreográfica, contrastando à postura estável de Sanada, que porta uma katana, com a mobilidade veloz da espada chinesa de Yen. A cena marca uma característica central do filme: o encontro dos dois atores é também um encontro de estilos de combate diferentes que revelam a personalidade de cada um dos personagens.
Se o primeiro filme da saga, “John Wick: De Volta ao Jogo” (dir. Chad Stahelski, 2014), já se propunha a criar combates elaborados que promoviam disputas entre diferentes artes marciais, as sequências “John Wick: Um Novo Dia Para Matar” (dir. Chad Stahelski, 2017) e “John Wick 3: Parabellum” (dir. Chad Stahelski, 2019) levaram o interesse formal no cinema de ação adiante, promovendo sequências exuberantes em situações improváveis.
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Em “Parabellum”, por exemplo, a personagem de Halle Berry lutava com a assistência de três cachorros que realizavam acrobacias de Agility enquanto vestiam coletes à prova de balas, e John Wick, personagem do protagonista Keanu Reeves, parece praticar a arte marcial pacifista Aikido, ao passo que dispara tiros letais na cabeça dos adversários.
“John Wick 4: Baba Yagga” vai além e faz da ação a centralidade absoluta da experiência fílmica. Chad Stahelski investe numa experiência cinemática em que a ação se prolonga pelas quase três horas de filme, sendo cortada brevemente por diálogos tensos em cenários exuberantes. Cada sequência de ação é introduzida com cuidado e, uma vez com o combate iniciado, o filme permite que o tempo se prolongue interessantemente para que as lutas sejam resolvidas.
Ao contrário da montagem de ação popularizada pela saga de Jason Bourne, inicialmente lançada por “Identidade Bourne” (dir. Doug Liman, 2002), em que cortes frenéticos com câmeras extremamente móveis desenvolvem as lutas confusas, a saga “John Wick” ficou famosa pelo empenho nas coreografias de ação e na minúcia com que trata os embates. Chad Stahelski permite que as diferentes formas de lutar também convoquem variadas tradições de encenação e montagem, e o encontro de lutas entre os personagens é também uma articulação de diferentes cinemas de ação: dos planos de tensão que antecedem as batalhas de Kurosawa, passando pela decupagem meticulosa do gesto dos filmes de Kung Fu de autores como Bruce Lee, chegando na câmera zenital dos tiroteios que parece remediar uma experiência dos videogames.
Como o encontro de Donnie Yen e Hiroyuki Sanada demarca, a ação de “John Wick” é sempre interessante porque ela revela a gestualidade dos personagens, desenvolvendo como cada um deles se relaciona com os outros e com os espaços. Vemos diferentes posturas, atitudes corporais e disposições de movimento. As lutas se dão em lugares marcantes (como museus, boates e pontos turísticos de Paris) que promovem desafios específicos aos personagens, ao passo que permitem a construção de uma fotografia meticulosa e exuberante por parte do cinematógrafo Dan Laustsen.
Os adversários também apresentam quebra-cabeças específicos. Sejam eles brutamontes gigantes, esgrimistas ou fuzileiros, cada um dos inimigos oferece perguntas que precisam ser solucionadas por John Wick e seus colegas. No quarto filme da franquia, esse empenho na ação é potencializado e quase tudo que precisamos saber sobre os personagens se desenha nas soluções que eles encontram para os combates: dar um tiro na cabeça ou arremessar um personagem de uma altura impensável é a peça final para qual cada sequência exaustiva de batalha aponta. Esse investimento faz bem ao filme, que, ao renunciar a uma narrativa complexa, permite que o prazer visual e cinético do cinema tome o centro da trama.
À medida que “John Wick 4” se compromete com a ação a partir de planos relativamente duradouros, o filme também desenvolve uma inesperada lentidão – e esse é um de seus grandes trunfos. Os assassinos de aluguel estão cansados e suas lutas prolongadas se convertem em performances físicas de desgaste. John Wick, o matador que almeja a tranquilidade da aposentadoria, aparece como um personagem comicamente vinculado a uma série de desventuras violentas, de modo que sua letalidade está sempre somada ao cansaço de uma vida que se alonga demais em seus inevitáveis combates.
Planos de conjunto meticulosamente compostos e close-ups de rostos sofridos ajudam a garantir o tom melancólico do filme e, assim, entre faces exaustas e violência extrema, “John Wick 4” cria uma sensibilidade que se destaca da poética dos seus antecessores (e dos outros filmes do gênero).
Ao fim, Chad Stahelski lança um filme que, felizmente, investe na afetação dos seus próprios estilismos, destacando o potencial coreográfico da ação cinematográfica e a alteridade evocada pelos belos close-ups. “John Wick 4: Baba Yagga” talvez acredite pouco no seu próprio enredo, mas certamente confia na visualidade e no gesto enquanto potentes meios de engajamento com o cinema e, então, faz o melhor que o cinema de ação pode fazer.
*Daniel de Andrade Lima é doutor em Comunicação e artista do movimento.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum.