O acordo assinado pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) no dia 09 de março passado, depois das denúncias da prática de trabalho escravo na serra gaúcha, exclui as vinícolas Salton, Aurora e Garibaldi de qualquer responsabilidade pelo crime a que eram submetidos os 207 trabalhadores resgatados, na sua maioria, nordestinos. De acordo com o próprio MPT, 95% dos escravizados se autodeclararam negros (64% pardos e 31% pretos), e 93% nasceram na Bahia.
É o que diz literalmente uma das cláusulas do Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), que vem sendo omitida pelos defensores do pacto com as empresas. A “Cláusula XII – das Disposições Finais” diz: “A celebração do presente termo não significa e não deve ser interpretada como a assunção de culpa ou qualquer responsabilidade das Compromissárias [as vinícolas] pelas irregularidades constatadas no curso da ação fiscal empreendida entre os dias 22 e 25 de fevereiro de 2.023 em Bento Gonçalves, que culminou no resgate de trabalhadores que prestavam serviços para a empresa Fênix Serviços Administrativos e Apoio a Gestão de Saúde Ltda.”.
Com isso, as empresas transformaram o pagamento de R$ 7 milhões, à título de indenização por danos morais individuais e coletivos, numa espécie de doação, já que o acordo com o MPT as exclui de responsabilidades e abre caminho para que tenham acesso a mecanismos de renúncia fiscal, tais como a possibilidade de descontarem tais valores nas declarações do Imposto de Renda.
As vantagens para as vinícolas, porém, não são apenas estarem isentas de responsabilidades, o que blinda seus diretores e as próprias empresas da ameaça de terem suas terras expropriadas, conforme prevê o art. 243 da Constituição para quem pratica trabalho escravo. Com o TAC mantiveram aberto o caminho para a concessão e ou renovação de empréstimos e ou financiamentos pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).
A Lei 11.948, de 16 de junho de 2009, no seu art. 4º, proíbe a concessão ou renovação de quaisquer empréstimos ou financiamentos pelo BNDES a empresas da iniciativa privada cujos dirigentes sejam condenados por assédio moral ou sexual, racismo, trabalho infantil, trabalho escravo ou crime contra o meio ambiente”.
Impunidade e vantagens
Trata-se da mesma estratégia denunciada pelo Coletivo Cidadania, Antirracismo e Direitos Humanos, no caso do acordo com o Carrefour para isentar a multinacional francesa de responsabilidades no assassinato do soldador Beto Freitas, morto por seguranças em 19 de novembro de 2020 – véspera do Dia Nacional da Consciência Negra, nas dependências da loja Carrefour do Bairro Passo D’Areia, em Porto Alegre.
O mesmo Coletivo constituído por advogados dos Estados de S. Paulo, Rio Grande do Sul, Bahia e Tocantins protocolou, na semana passada, Ação Civil Pública no Fórum de Bento Gonçalves, pedindo a condenação das vinícolas ao pagamento de R$ 207 milhões por dano moral coletivo, além de obrigações de fazer, como a realização de campanha nacional contra a discriminação de natureza regional e étnica que atinge nordestinos, em especial, nos Estados do sul e sudeste do país.
Entre as entidades que passaram procuração para os advogados agirem com base na Lei da Ação Civil Pública – Lei 7.347/85 -, estão a Maria Mulher – Organização de Mulheres Negras, de Porto Alegre, o Movimento de Direitos Humanos, do Tocantins, e o Coletivo de Advogados pela Democracia e a Soeuafrobrasileira, ambas de S. Paulo.
Nos 17 considerandos que abrem e justificam o acordo patrocinado pelo MPT, o TAC deixa em segundo plano os gravíssimos crimes praticados contra os trabalhadores resgatados, isenta as vinícolas, responsáveis solidárias no plano cível pela prática do trabalho escravo, garante-lhes acesso a financiamentos do BNDES e ou continuidade de empréstimos, e terceiriza a responsabilidade para a empresa Fênix – agenciadora da mão de obra escrava.
De acordo com os advogados do Coletivo que assinam a Ação Civil Pública, o acordo só beneficia as vinícolas e representa “um deboche, um escárnio” diante da gravidade da permanência do crime de trabalho escravo, quase 135 anos após a Abolição do escravismo no país.
Dojival Vieira é editor e diretor da AfroPress