O preconceito é uma primeira compreensão, em geral, parcial, incompleta, fosca, de alguma coisa. Uma opinião formada sem reflexão. Talvez, por isso, muitos preconceitos têm um sentido negativo. O preconceito pode ser um ponto de partida que, se for bem desenvolvido, pode tornar-se um conceito, ou seja, um conhecimento mais amplo e completo. O preconceito só se torna negativo quando ficamos nele, sem desenvolvê-lo. Aí ele nos limita, nos impede de ver as coisas de uma maneira mais desenvolvida, ampla, transparente.
Já o estigma pode ser compreendido como um atributo negativo ou depreciativo, que torna o sujeito diferente, diminuído ou possuidor de uma desvantagem. Na questão LGBTQIAP+, uma das facetas que o estigma apresenta, é reconhecidamente, como um dos maiores empecilhos aos avanços das políticas e ações que buscam garantir os direitos dessa população à dignidade e à cidadania.
De acordo com a Declaração Universal dos Direitos Humanos no seu artigo 1: todas os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade. No entanto, o cotidiano das pessoas LGBTQIAP+ no Brasil é extremamente difícil. Essa população é frequentemente alvo de preconceitos e abusos de extremistas religiosos, grupos paramilitares, neonazistas, ultranacionalistas, entre outros grupos, além de sofrer com a violência no ambiente familiar e comunitário. Lésbicas e mulheres transexuais estão em situação de risco particular.
Sobre o universo dessas últimas pessoas supracitadas, vale a pena adentrar sobre o conceito de transfobia, que se refere a qualquer ato ou comportamento baseados no medo, intolerância, rejeição, aversão, ódio ou discriminação às pessoas trans por conta de sua identidade de gênero. Sendo assim, o comportamento transfóbico corresponde a quaisquer agressões físicas, verbais ou psicológicas manifestadas com a intenção de reprimir a expressão de gênero de transexuais e travestis. E essa discriminação sob pessoas transexuais resulta na exclusão social das pessoas trans, e acabam impedindo-as de exercer a sua singularidade no mundo, provocando o sentimento de não pertencimento à cultura em que estão inseridas.
As estatísticas sobre as pessoas trans que vivem no Brasil são extremamente preocupantes. Pelo 13º ano consecutivo o Brasil continua sendo o país onde mais se mata a população trans, seguido pelo México e os Estados Unidos, de acordo com a ONG Transgender Europe (TGEU, na sigla em inglês), que reportou 375 assassinatos em todo o mundo no ano passado. A expectativa de vida de pessoas trans no Brasil é de menos de 35 anos, enquanto, segundo dados do IBGE a dos brasileiros binários (termo que expressa a ideia de que só existe macho I fêmea, masculino I feminino, homem I mulher) que nasceram em 2021 é de 77 anos.
Nas últimas semanas, no Dia Internacional da Mulher, um deputado federal, eleito pelo voto popular, sobe a tribuna do plenário da câmara dos deputados e profere um discurso transfóbico justamente no dia em que é marcado para celebrar, refletir e dialogar sobre a existência das mulheres, suas pluralidades, e tudo que isso envolve, inclusive a questão política e os direitos das mulheres. Mas o deputado em questão resolveu fazer diferente, e em algumas das suas justificativas para tal feito, coloca que optou por falar do “ridículo”, expondo aquilo que de acordo com o seu julgamento pessoal ainda é ridículo. De longe, no mínimo, curioso. De acordo com a legislação e operadores do direito, de fato, um crime.
No dia 13 de junho de 2019, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou que a discriminação por orientação sexual e identidade de gênero passasse a ser considerado um crime. Na época, dez dos onze ministros que compõem o colegiado da suprema corte reconheceram haver uma demora inconstitucional do poder Legislativo em tratar do tema. Apenas o ministro Marco Aurélio Mello apresentou discordância. Em face a esta omissão, por 8 votos a 3, os ministros determinaram que a conduta passasse a ser punida pela Lei de Racismo (Nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989.). O racismo é um crime inafiançável e imprescritível segundo o texto constitucional e pode ser punido com um a cinco anos de prisão e, em alguns casos, multa.
Muito dessa conquista para a população LGBTQIAP+ se deu por conta do suor e das reivindicações de militantes e movimentos sociais LGBTQIAP+ no país. A criminalização destas condutas chegou ao STF por meio de duas ações, movidas pela Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transgêneros e Intersexos (ABGLT) e pelo Partido Popular Socialista (PPS), em 2012 e 2013, respectivamente. Tais ações argumentavam que o artigo 5º da Constituição Federal de 1988 determina que qualquer "discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais" seja punida - e que a Lei de Racismo mostra que optou-se por fazer isso criminalmente.
Diante do exposto, uma questão faz-se pertinente indagar, afinal, o que é uma mulher? Para o Psicanalista Francês Jacques-Marie Émile Lacan, toda mulher sai desidentificada tanto do pai, quanto da mãe de um período que ocorre na infância nomeado por Sigmund Freud como Complexo de Édipo. E, portanto, cada mulher pode responder ao que é ser uma mulher a sua maneira. Por isso Lacan utiliza a sua famosa frase em forma de metáfora “a mulher não existe”, porque existem as mulheres, com seus quereres e cada uma com a sua resposta.
Na sua fórmula da sexuação, estabelecerá o homem no lugar do sujeito barrado, daquele que acha que possui o falo (conceito que também pode ser compreendido por um poder que alguém supõe ter), mas só o possui em relação ao lado dito “mulher”. Para os leigos, é como se o homem só fosse homem e se afirmasse homem em relação com uma mulher. Já a mulher, é situada no lugar do não-todo, justamente no lugar da criatividade e da inventividade, pois não há identificação. Em última instância, quem é castrado é o homem, pois se por um lado sua saída do Édipo é mais simples, ela é muito mais precária em termos de inventividade.
Portanto, Lacan estabeleceu o alicerce para que outros fossem além, e faz todo sentido. Toda teoria de gênero moderna vem justamente de mulheres, inexistentes, não-todas e desejantes, que brincam com as formas e com as possibilidades de si e da transformação, enquanto o homem fica no registro patético de medir seu órgão genital e ver quem “pega” mais ou “pega” menos, preso ao registro do gozo-fálico, numa luta derrotada contra o pai simbólico.
Desse modo, o discurso transfóbico do deputado supracitado não se sustenta, o uso da peruca loira, o nome e as demais invenções que atribuiu ao “personagem” criado para o momento do discurso, nos revela uma faceta menos superficial de um ódio que não parece corresponder a quem foi endereçado, e pode dizer mais sobre o seu enunciador. Já o argumento de “falar do “ridículo”, expondo aquilo que de acordo com o seu julgamento pessoal ainda é ridículo” pode ser mais pessoal do que possamos imaginar. Afinal das contas, subjetivamente, o ato e/ou comportamento de um homofóbico e/ou transfóbico está mais profundamente conectado a subjetividade do seu autor do que propriamente à vítima. E por trás de todo ódio, preconceito, e discriminação existe uma fragilidade singular aparentemente insuportável.
Já a nível de sociedade, sobre a questão LGBTQIAP+ o Brasil é um país muito reprimido por conta de sua vasta história de exploração e colonização. Portanto, produtor de um quantitativo robusto de pessoas conservadoras, carentes de informação, diálogo e reprimidas, mas, ser uma pessoa reprimida no geral não é de todo um problema, o que torna dessa condição algo difícil, é o que fazemos com ela. De certo, o ódio, o preconceito, o estigma, a discriminação e a exclusão não são os melhores caminhos possíveis. O que possibilita a transformação da repressão em algo saudável é a fala, portanto, que possamos construir uma sociedade mais aberta ao diálogo e a construção de um mundo possível para todos, que considere e evolua com as diferenças, elementos que tornam cada existência única.
*Caique dos Santos Oliveira é psicólogo e pós-graduando em Psicanálise e atua como articulador do Movimento Nacional de Direitos Humanos do Estado de Minas Gerais, além de ter realizado trabalhos como educador social do CRAS - Centro de Referência de Assistência Social. Foi também presidente do CMAS (Conselho Municipal de Assistência Social), secretário municipal de Assistência Social e presidente do Conselho Tutelar do Município de Virgínia (MG). É autor de livros e blogs sobre saúde mental.
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