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A reparação histórica à Escola de Teatro Martins Penna pelo poder público – Por Heitor Collet

A centenária Escola de Teatro Martins Penna parece estar fadada a viver uma crise de quando em quando

Escola pública de teatro Martins Pena.Créditos: Twitter
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Aprisionado em um looping no tempo por um estranho feitiço, um jornalista rabugento – interpretado pelo comediante Bill Murray – acorda todo dia no mesmo dia do ano (o "Dia da Marmota") obrigado a cobrir as festividades de uma cidade provinciana nos Estados Unidos, onde, por "força do destino", tem que conviver com a população local e suas peculiaridades, a fim de tornar-se uma pessoa melhor e se libertar.

Essa seria a moral da história neste clássico filme e ela não tem muito a ver com a crítica deste artigo. Não obstante, sua narrativa construída na ideia de uma pessoa que fica "presa no tempo" tem tudo a ver com o que vamos mostrar adiante: a centenária Escola de Teatro Martins Penna parece estar fadada a viver uma crise de quando em quando e, assim como Bill Murray, parece estar em um grande looping no tempo.

Analisando a história através dos registros na imprensa, sem pestanejar, podemos afirmar que a primeira escola pública de teatro do país nasceu propriamente de uma "crise": a do Teatro Brasileiro. Durante boa parte do século 19, literatos e personalidades insistiam que o Brasil precisava de um "teatro nacional sério", que se nivelasse em qualidade ao teatro que era produzido na Europa. Pautada em valores eurocêntricos, tratava de uma "crise" que, dentre outras demandas, imputava ao Estado Brasileiro a necessidade de criação de uma escola que formasse autores, intérpretes e profissionais de teatro "gabaritados".

Pesquisando sobre a Escola de Teatro Martins Penna, encontramos muitos textos afirmando que esta teria sido fundada em 1908, na ocasião, com o nome de Escola Dramática Municipal. Trata-se de uma afirmação controversa, haja vista que uma publicação1 do jornal O Paiz indica o início de suas atividades em 1910 e uma outra publicação2, do mesmo periódico, indica que suas aulas começaram em 1911.

A título de curiosidade, escovando a história a contrapelo, como nos provoca Walter Benjamim, e compreendendo a história em um movimento construído cotidianamente pelos seus sujeitos, podemos encontrar reclames para criação de um escola de teatro já lá nos idos de 1840, nas falas de Luiz Carlos Martins Penna – o patrono que dá nome a escola na atualidade – e na voz de outras personalidades esquecidas na nossa memória nacional, como Francisco de Paula Britto, o principal tipógrafo do Império de Pedro II, primeiro editor de Machado de Assis, neto de um marinheiro alforriado a quem lhe foi devida sua formação. Depois destes, vieram ainda outros ao longo do século 19, como o ator João Caetano e o escritor Artur de Azevedo, este que, em 1895, iniciou uma grande campanha junto à imprensa para a construção de um teatro moderno para a cidade do Rio de Janeiro.

Elucidando a questão da fundação da Martins Penna, o que ocorreu em 1908 foi a publicação de um edital divulgando uma concorrência pública para conceder a gestão do Theatro Municipal da cidade do Rio de Janeiro (recentemente construído), obrigando os empresários vencedores do certame a criarem uma escola pública de teatro. E assim aconteceu. Conquanto, daquele tempo até hoje, 2023, o que temos é uma história de resistência em meio a crises recorrentes que teimam em tentar acabar com a centenária Escola de Teatro. Mas a Martins resiste.

Em 1911, pouco tempo após a inauguração da Escola, seu primeiro diretor, Coelho Netto, pede demissão ao prefeito em face do descumprimento da manutenção da subvenção da instituição por conta dos empresários Carlos Gomes Fernandes e Guilherme da Rosa, responsáveis pela gestão do Theatro Municipal, além da dificuldade de manter seus professores, principalmente na cadeira "Arte da Cena".

Em 1928, um jornalista do noticiário O Globo faz uma matéria denunciando o estado da Escola Dramática com o seguinte título: "O teatro, índice da cultura de um povo - Deplorável o estado da Escola Dramática Municipal". Nesta matéria, para além de comunicar a situação de absoluta penúria das instalações onde se encontrava instalada a Escola (na ocasião, um imóvel arrimado em um dos lados do atual Teatro João Caetano, onde antes funcionava um clube de jogo), cita também o curioso fato de Coelho Netto, ainda diretor da instituição, não poder receber os aplausos de uma apresentação realizada por conta de ter emprestado suas botas ao figurino de um dos atores que estava em cena.

Entre 1933 e 1939, a escola sofreu com graves crises em face das instalações precárias e falta de pessoal. Em 1935, Oduvaldo Viana assume a direção da escola que passa a se chamar Escola Dramática Coelho Netto. Em 1939, cinco de seus sete professores são obrigados a deixar a escola devido a uma lei que proíbe funcionários do governo de acumular cargos, interferindo diretamente no seu funcionamento.

De 1940 a 1943, a escola fecha. Desafiamos pesquisadores a encontrarem fichas de matrículas de estudantes deste período no Centro de Memória da Martins Penna (sim, a Escola tem um Centro de Memórias, importantíssimo para a história do Teatro Brasileiro, hoje muito bem cuidado pelas professoras Christiane Messias e Rosane Bartholazzi). Segundo, José Lins do Rego, em 1943, a Escola encontrava-se no segundo andar da "Biblioteca Municipal", mas sem alunos ou professores. A crise gerada pela Segunda Guerra Mundial pode ter sido um estopim para o encerramento das atividades da Escola Dramática, porém, muitas outras instituições públicas não fecharam suas portas.

Milagrosamente, poderíamos dizer que, graças aos deuses do Teatro, a Escola retomou suas atividades em 1944 passando a fazer parte dos quadros de Serviço de Teatros da Prefeitura. Em 1948, Renato Vianna assumiu a direção da Escola que se encontrava em vias de desaparecer. Sem professores e sem programa, ocupava uma sala emprestada na Praça Mauá e, com a chegada de Vianna, a instituição transferiu-se para o Theatro Municipal, tendo que dividi-lo com outras atividades.

Só em 1951 chega ao atual endereço na Rua Vinte de Abril, no Solar do Rio Branco (o casarão que está para cair!). Em 1953, passa então a se chamar Escola de Teatro Martins Penna. Outra curiosidade: o nome de Martins Penna foi sugerido à Escola de Teatro por incentivo do então vereador Raymundo Magalhães Júnior, ocupante da cadeira 34 da Academia Brasileira de Letras, pai da carnavalesca premiadíssima Rosa Magalhães, uma singela singularidade que nos faz pensar a centenária Escola de Teatro como um lugar de diálogo entre o erudito e o popular.

Uma escola nômade – antes de chegar ao endereço atual na rua Vinte de Abril, passou por diversas diretorias e endereços no seu quase meio século de existência: pelo Theatro Municipal da cidade do Rio de Janeiro; pela Biblioteca Nacional; pela Diretoria Geral de Instrução Pública; pela Universidade do Distrito Federal; por um brevíssimo período esteve ligada ao Departamento de Difusão Cultural da Secretaria Geral de Educação e Cultura (onde teve o nome de Escola de Teatro e Cinema); pelo Instituto de Educação na Rua Mariz e Barros, na Tijuca, atual ISERJ; pelo Teatro João Caetano; pela Escola Venezuela; por endereços diversos e, em muitas das vezes, em locais inapropriados.

O fato de chegar ao Solar do Barão do Rio Branco, e de lá estar desde então até os dias atuais, não significou a cessão das crises. Na década de 1960, antes e durante o período da Ditadura Militar, sofreu com ataques de toda ordem (Bárbara Heliodora foi uma personalidade que fez críticas ferozes à Escola). Entre 1967 e 1968, a Martins quase ficou refém de uma comissão criada pelo Estado para avaliar seus trabalhos. Esta comissão, presidida por Pascoal Carlos Magno e que contava com a presença de Yan Michalski e Amir Haddad, pasmem, recomendou o fechamento da escola. Os motivos não ficam nítidos nas matérias dos jornais. Mas o fato está registrado na imprensa.

No fim da década de 1970 e início da década de 1980, o saudoso ator José Wilker chega para dirigir a escola. Apesar de todo esforço, seu prestígio não foi suficiente para dar à instituição aquilo que o Estado já lhe devia há anos. O resultado foi mais crise. Uma dessas crises culminou na primeira paralisação dos docentes da escola e teve como vitória da luta a contratação de professores extra quadro pela Fundação de Artes do Estado do Rio de Janeiro – FUNARJ. Os professores, até então, encontravam-se à deriva sem a segurança de seus salários.

Já extensa a lista de conflitos neste artigo, em resumo, a escola ainda viveu colapsos: em 1988, sob a direção de Beatriz Resende; em 1997, sob a direção de Mario Mendes (que foi estudante e mestre na escola, recentemente falecido); em 2006, onde saiu da gerência da Secretaria de Estado de Cultura e foi absorvida pela FAETEC; em 2015, quando se instalou a crise dos "contratos temporários" da FAETEC e quando surgiu o importante movimento "Martins Sem Pena"; e, agora, em 2023, o movimento "A Casa Vai Cair", estes dois últimos capitaneados bravamente pelos estudantes e apoiados pelos servidores públicos da Escola.

De uma vez por todas, o que os governantes precisam entender é que a Escola Técnica Estadual de Teatro Martins Penna é um patrimônio, não apenas por conta da excelência dos trabalhadores de Teatro e das Artes que contribui a formar. A Escola de Teatro Martins Penna é um patrimônio porque abre espaço para a convivência entre classes (nem sempre pacífica) de sujeitos que, através da cultura, constroem diariamente a luta por justiça social em um segmento altamente elitizado em nossa sociedade. Assim como sonhou Anísio Teixeira, uma escola pública, na mais forte acepção da expressão.

Através das suas produções e performances, seu cotidiano expõe os conflitos de classe que assolam nossa sociedade, atravessados pelas lutas de igualdade de gênero e raça, pela luta contra a homofobia e transfobia e, naturalmente, pela luta contra o facismo e os microfascismos que teimam diariamente em oprimir nossas classes populares. Com todas suas contradições, a Martins Penna é um espaço de acolhimento e debates acerca da importância de pensar reparações históricas.

Quando precisamos explicar a importância da Martins Penna para a sociedade, costumamos citar Procópio Ferreira, Teresa Rachel, Joana Fomm, José Wilker, Denise Fraga, Armando Babaioff e outras personalidades formadas pela instituição. Sem desmerecer estes e estas artistas, com máximo respeito, precisamos ouvir também estudantes e docentes, os servidores públicos da Martins (de ontem e de hoje) e precisamos citar cada vez mais personalidades como Luiz Antonio Pilar, Maria Ceiça, Renata Tavares e a Cia Cria do Beco; Graciana Valladares e o Teatro na Zona Norte; André Lemos, Tarso Tabu, Wayne Marinho, Claudia Macedo, Juliane Cruz e o trabalho da Confraria do Impossível; Orlando Caldeira, Sol Miranda, Blackyva, Digão Ribeiro, Eli Ferreira, Vitória Rodrigues, Aliny Ulbricht, Diogo Nunes, Tati Villela, Júnior Melo dentre tantas outras personalidades e coletivos, o espaço aqui é (muito!) pequeno para citar.


A casa não pode e não vai cair. A fundação já foi feita. Mas não basta reformar, o momento é de revolução. É hora de fazer subir um prédio para Martins: de ampliar seus espaços, entregar laboratórios necessários, salas com pisos adequados, teatros devidamente construídos e equipados. Transformar a escola em uma instituição de nível superior.Isso, sim, seria uma reparação histórica à Escola (centenária) de Teatro Martins Penna.

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Heitor Collet é professor da Escola Técnica Estadual de Teatro Martins Penna, doutor em Educação pela Universidade Federal Fluminense com ênfase nos Estudos do Cotidiano da Educação Popular e pesquisador dos grupos ALFAVELA/UFF e LAPA/Martins Penna.