LITERATURA

Sopa de ossos: “Pachinko” e o perrengue coreano – Por André Cunha

O espectro do perrengue ronda a península coreana em Pachinko, que de cara põe o leitor de frente com um cortejo de famílias desnutridas, males incuráveis, mortes precoces e abortos

Pachinko.Créditos: Divulgação
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Embora definida pelo dicionário Aurélio, na primeira acepção, como um adjetivo que significa covarde e/ou medroso, a palavra perrengue tende a ser empregada, no uso cotidiano, de acordo com segunda acepção, a de substantivo abstrato, no sentido de “situação difícil.”

Como a enfrentada pelos sujeitos dessa notícia: “Caminhão de ossos no Rio é disputado por população com fome.” E que situação! Não que o ato de comer ossos em si configure algum tipo de retrocesso civilizatório. Há inclusive receitas tradicionais, encontradas em diversas culturas gastronômicas, que levam o ingrediente, com destaque para o italiano “ossobuco”, feito com a perna traseira do boi, descrito assim no blog.tudogostoso.com:

“Ele é arredondado e tem uma parte óssea em formato de tubo, onde está o tutano, rico em proteínas e com alto valor nutritivo. O tutano é gorduroso e gelatinoso e tem um sabor marcante. Muitas pessoas viram a cara para o tutano, mas, em muitos países, ele é amplamente utilizado em molhos e também assado.”

Questões culturais e ossos nobres à parte, não é preciso ser nenhum especialista em insegurança alimentar para perceber que o consumo de ossos e carcaças, geralmente empregados na produção ração animal, está diretamente relacionado ao empobrecimento da população e costuma disparar em tempos de guerra, escassez, carestia e fome. É o caso do extremo oriente na primeira metade do século passado, tema e cenário do romance Pachinko, de Min Jin Lee, publicado por aqui pela Intrínseca com tradução de Marina Vargas.

Acompanhando a saga de uma família que migra da Coreia para o Japão na década de 30, o livro retrata o cotidiano de “pessoas que a história parece querer apagar”, nas palavras da resenha do The Guardian destacada na quarta-capa. As condições são extremas: miséria, frio e fome. As doenças, como varíola e tuberculose, constantes. Em meio a um turbilhão de dificuldades, essa multidão de famintos que teima em resistir ao apagamento da história - operários, camponeses, pescadores, cozinheiras, vendedores ambulantes, pastores, donas de casa e funcionários dos salões de pachinko (jogos de azar jogados em máquinas que parecem o pinball, inspiração do nome do livro) - tem um objetivo claro: sobreviver a qualquer custo. Acompanhem a naturalidade com que um açougueiro explica a receita de uma saborosa e nutritiva sopa de ossos: 

“Primeiro, você lava os ossos com muito cuidado em água fria. Em seguida, ferve os ossos e joga fora essa primeira água, porque ela contém todo o sangue e as impurezas que não queremos no caldo. Depois, ferve-os novamente com água limpa e fresca e deixa-os cozinhar por um longo, longo tempo, até que o caldo fique branco como tofu. Então acrescenta rabanete daikon, cebolinha picada e sal. É delicioso e muito bom para a saúde.”

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Um dos lugares mais superpopulosos do mundo, vizinha de duas potências com ímpetos imperialistas – China e Japão -, dividida ao meio por uma guerra civil, palco de intensos fluxos migratórios e objeto de recorrentes tensões geopolíticas, a Coreia é um país com fome. De liberdade no Norte comunista, um regime com pretensões nucleares e uma extensa ficha corrida de violações aos direitos humanos. De prosperidade no Sul capitalista, feroz desbravador de mercados e exportador de tecnologias, conteúdos e capital humano. Em suma, fome de tudo.

Se a imagem projetada pelo Norte chega ao ocidente “fotoshopada” pela propaganda oficial do regime, o Sul não hesita em se mostrar tal como é, carregando nas tintas do ultrarrealismo: selvagem, caótico, tumultuado e vibrante. Narrativas literárias e audiovisuais sul-coreanas transcorrem com frequência em megalópoles caleidoscópicas, verdadeiras selvas de concreto que conjugam cenários labirínticos, péssimas condições sanitárias e altos índices de insalubridade. Trabalhando, quando há trabalho, em funções precarizadas, amontoados em depósitos humanos superlotados, os personagens se viram como podem e se acomodam onde há espaço.

Se você lembrou de Parasita, não foi por acaso. Um dos mais icônicos e bem-sucedidos filmes sul-coreanos dos últimos tempos, o multipremiado longa-metragem dirigido por Bon Joon-ho ganhou o mundo e projetou no imaginário cultural uma imagem marcante da Coreia. Nele, o espectador acompanha o perrengue de uma família que mora num cubículo encravado no subsolo vivendo a vida do jeito que dá, seja dobrando milhares de caixas de pizza em alta velocidade em poucos minutos, seja tentando captar, não sem algum contorcionismo, o sinal de internet dos vizinhos.

Já na série Round 6, fenômeno de visualizações na plataforma Netflix, pessoas endividadas são levadas a jogar um jogo macabro em busca de um prêmio bilionário, arriscando a vida em brincadeiras infantis nas quais os perdedores são executados. Intimidado por agiotas, o protagonista chega a assinar um documento no qual renuncia à própria integridade física em caso de inadimplência. “Se não pagar até o fim do mês, vou pegar um dos seus rins e um olho seu, está bem?” pergunta o credor. É, claro, uma pergunta retórica.

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O espectro do perrengue ronda a península coreana em Pachinko, em cujas primeiras páginas o leitor é apresentado a um verdadeiro cortejo de famílias desnutridas, males incuráveis, mortes precoces e abortos. Numa ilhota de pescadores junto à cidade portuária de Busan, na costa da Coreia, Sunja, filha de um pescador aleijado com uma jovem agricultora, consegue a proeza de chegar viva até a adolescência, apenas para apaixonar-se por um forasteiro chamado Hansu, de quem fica grávida. Mas há um problema: ele é casado, tem mulher e filhas no Japão. Não obstante, se compromete a dar casa e comida para Sunja e a criança. Oferece, na verdade, levando em conta o que ela tem, que é nada, uma boa vida.

Nada feito. Recusando-se e fazer o papel de amante, a pobre heroína parece ter pela frente um destino irremediavelmente maculado, até que um jovem e abnegado pastor da igreja presbiteriana se predispõe a casar com ela, assumir o filho e levá-la para o Japão em busca de novas e melhores oportunidades.

A sombra do Hansu, no entanto, um influente membro da Yakuza, o clã mais temido da máfia japonesa, vai perseguir a humilde família ao longo das próximas décadas. Aqui entram em cena questões de honra e lealdade que motivam ações extremas e causam exasperante sofrimento psíquico. Relações desfeitas, biografias manchadas, cartas de despedida. Dramalhão não falta.

Paralelo às peripécias do atormentado núcleo familiar, o livro traça um perfil dos zainichi, termo usado para descrever os coreanos japoneses que migraram na época colonial e seus descendentes. Embora muitos zainichi estejam no Japão há gerações, completamente integrados do ponto de vista cultural e linguístico, persistem, na sociedade japonesa, traços de intolerância, xenofobia e preconceito, como o estereotipo segundo o qual coreanos são ignorantes, sujos e feitos para trabalhos braçais. Resumindo, cidadãos de segunda classe.

Acrescente ao preconceito de origem étnica e cultural o preconceito institucionalizado e respaldado pelo projeto imperial japonês e vai calculando o tamanho do perrengue. De 1910, precisamente quando começa a história de Pachinko, até o fim da Segunda Guerra Mundial em 1945, o Japão ocupou militarmente a Coreia e não economizou na truculência: saques, estupros, trabalho escravo e um rol extenso de crimes contra a humanidade. 

É certo que, a despeito das circunstâncias adversas, muitos zainichi sonharam em voltar para casa. Nas páginas de Pachinko, esses sonhos são seguidamente cancelados pelas notícias que chegam de lá, sobretudo do Norte, como execuções em massa, perseguições políticas, fuzilamentos sumários e alistamento militar obrigatório. Zero notícias auspiciosas. A autora realiza uma manobra sagaz ao pintar uma relação de afeto entre a cunhada de Sunja e um amigo da família, relação essa que não pode ser concretizada pelo fato de ela ser casada (à essa altura o marido, vítima da radiação advinda da explosão atômica em Nagazaki, não passa de um inválido entregue ao alcoolismo).

O que fazer, senão sentar e esperar que morra? A questão é que ele não morre. Cansado de esperar, o tal amigo toma a decisão intempestiva, típica dos apaixonados, de voltar para a Coreia do Norte, deixando um fio solto que numa narrativa mais convencional seria fatalmente retomado em alguma parte, selando o reencontro. Jamais se ouve falar dele de novo. Outros também se perdem pelo caminho. Os fios soltos transmitem a sensação de transitoriedade e esgarçamento. Tudo parece impermanente e frágil.

É interessante notar que se a primeira parte do livro gira em torno da luta pela sobrevivência e pelo próximo prato de comida, na segunda, quando os filhos de Sunja se estabelecem no Japão e alcançam algum sucesso financeiro, as tensões narrativas se transformam, os conflitos dramáticos mudam e passam a envolver aventuras extraconjugais, desejos reprimidos e problemas de autoaceitação e adição em drogas. Ou seja, neuras normais de pessoas que podem se dar ao luxo de ter neuras. Apesar da mudança temática, a questão central permanece, mesmo que em diferentes formatos: a saga do povo coreano para vencer na vida e ser aceito. 

A identidade coreana é um ponto tão central do livro que a autora opta por transcrever, na epígrafe da terceira parte, um texto deveras longo – em se tratando de epígrafes - de Benedict Anderson sobre o conceito de comunidades imaginadas. Nele, o historiador e cientista político fala sobre a nação como “uma camaradagem profunda e horizontal”, uma ideia compartilhada por milhões de pessoas que “nunca conhecerão a maioria dos seus compatriotas, nunca os verão nem ouvirão falar deles, ainda que em cada um viva a imagem de sua comunidade...”

Realçar essa imagem fugidia, captar, ainda que de relance, o perfil dessa ideia compartilhada chamada Coreia é talvez a maior virtude de Pachinko, que, embora se passe em grande parte no Japão, fala sobre a dor e a delícia de ser coreano, de sentir-se coreano onde quer que seja.

O drama dos zainichi no Japão é o foco de interesse da autora, como explica na parte dos agradecimentos: “Alguns coreanos no Japão não desejam ser chamados de zainichi, porque o termo significa, literalmente, estrangeiro que reside no Japão, o que não faz sentido, já que muitos são a terceira, quarta ou quinta geração de coreanos no país. Há muitos coreanos étnicos que são agora cidadãos japoneses, embora a opção de se naturalizar não seja fácil. Também há muitos que se casaram com japoneses ou que tem herança coreana parcial. Infelizmente há uma longa e conturbada história de discriminação jurídica e social contra os coreanos e aqueles que tem origem coreana no Japão. Há quem nunca revele a sua herança coreana, embora sua identidade étnica possa ser rastreada por meio de seus documentos de identificação e registros governamentais.” Não é difícil imaginar, contudo, dramas parecidos em outros lugares e contextos, tendo em vista os constantes fluxos migratórios que saíram e saem da Coreia para o mundo todo.

Membro exitoso dessa longa diáspora, o mafioso Hansu, de longe o personagem mais interessante, representa bem a força de vontade da qual é preciso lançar mão para vencer num lugar hostil e ser respeitado. Apesar de coreano, fato sobre o qual não faz alarde, mas tampouco esconde, poderoso, influente, temido, encarna o papel de self-made-man, de sujeito que prosperou em virtude do próprio tino e caráter pragmático: “Ele nunca havia frequentado a escola e a universidade. Hansu tinha aprendido a ler e escrever em coreano e japonês sozinho e, assim que conseguiu algum dinheiro, contratou professores particulares para aprender o kanji e o hanja necessários para ler os difíceis jornais japoneses e coreanos. No entanto, o que mais o impressionava eram os homens cultos que sabiam ler e escrever bem. Buscava fazer amizade com grandes jornalistas, porque admirava a clareza com que expressavam suas ideias e pontos de vista sobre as notícias do dia. Hansu não acreditava em nacionalismos nem em religiões, não acreditava nem mesmo no amor, mas confiava na educação.”

É por meio da educação, portanto, bancando os estudos do filho bastardo nas melhores universidades japonesas, que Hansu pretende formar um cidadão de primeira classe, orgulhoso das suas origens e comprometido com grandes conquistas no futuro. Pouco importa que seus sonhos, como tantos outros, sejam frustrados. A admiração que sente pelo filho a quem não pode se revelar, de cujo amor tanto precisa, objeto de curiosidade, fonte de satisfação e orgulho, é um dos sentimentos mais tocantes do livro. Que, no fundo, se resume a isso: relação pais-e-filhos, amor incondicional, sacrifícios, luta pela sobrevivência. De geração em geração, do jeito que dá, apesar das mágoas, do perrengue, apesar de tudo.

O sacada gastro-literária de Min Jin Lee consiste em colocar essas questões estruturantes na panela, ferver por um longo, longo tempo e engrossar caldo, como na receita da sopa de ossos. Sua matéria prima é aquilo que resta, a parte que sobra, depois que tudo mais foi despojado. O tutano da vida.

*André Cunha publicou o romance Brasília, “Gravidade Zero”, finalista do Prêmio Sesc de Literatura de 2015, pela Selo Jovem; a novela satírica “Colisão Frontal”, pelo Grupo Editorial Caravana; a ficção especulativa “O Futurista – Reportagens Que Vão Mudar o Mundo” e o livro didático “Ciência Política Descomplicada”, pela Trevo. Também escreve na imprensa.

**Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.