Testemunhamos no Senado uma triste reviravolta na saúde pública brasileira. A PEC do Plasma, aprovada por uma margem apertada de quatro votos, representa um grave retrocesso ao transformar o sangue da nossa população em mercadoria. Este lamentável episódio coloca em risco a vida de toda a população do país. Como médica, deputada e cidadã, não posso deixar de expressar minha profunda preocupação e revolta diante dessa decisão.
A PEC do Plasma, formalmente conhecida como Projeto de Emenda Constitucional 10/2022, propõe que a iniciativa privada colete e processe plasma humano, permitindo sua comercialização e a produção de seus derivados. Isso representa um ataque direto à cidadania e ao espírito da Constituição de 1988, que sábia e claramente definiu que a responsabilidade pelo processamento e distribuição de sangue e hemoderivados no Brasil deveria ser exclusiva do Estado, através do Sistema Único de Saúde (SUS), garantindo também o acesso universal a estes insumos biológicos a todo o povo brasileiro.
A PEC busca modificar o artigo 199 da Constituição Federal, introduzindo um novo parágrafo que regulamenta a coleta e processamento de plasma humano pela iniciativa privada. Apesar de parecer um avanço na pesquisa de tecnologias de saúde, é, na realidade, um passo preocupante em direção à privatização da saúde brasileira. Essa agenda é defendida por setores que colocam o lucro acima do bem-estar do povo.
Atualmente, a Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia (Hemobrás) é responsável pelo processamento e distribuição de plasma e seus derivados, com foco na autossuficiência do país. A unidade em Goiana (PB) é a maior da América Latina, processando 500 mil litros de plasma ao ano. Isso nos aproximaria da autossuficiência e garantiria o acesso universal e gratuito a medicamentos derivados do sangue para os usuários do SUS.
Mas por que, então, essa ânsia de privatizar o processamento de plasma? A resposta está no valor financeiro desse mercado, que movimenta cerca de 10 bilhões de reais por ano. A PEC do Plasma transforma uma parte do corpo humano em mercadoria, algo moralmente inaceitável.
Lembramos que, antes da Constituição de 1988, as pessoas eram pagas para doar sangue (e plasma), em um Brasil marcado pela fome e pela crise econômica. E, durante esse período, o país enfrentou uma crise de saúde com a epidemia de AIDS, causada em parte pela falta de controle e qualidade do sangue. O sociólogo Betinho e seus irmãos Henfil e Francisco Mário foram vítimas dessa tragédia sanitária.
A mercantilização e exportação de sangue nos mantêm presos a um modelo neocolonial que parte da elite brasileira deseja perpetuar. A exportação de plasma não melhorará o acesso a medicamentos e tecnologias de saúde. Para garantir isso, precisamos justamente do contrário: de fortalecer a Hemobrás; garantir investimentos nas universidades e na pesquisa científica; e, como sempre, defender o SUS.
O plasma é um bem que deve ser protegido, e a doação de sangue é um pilar fundamental do acesso à saúde e dos princípios sociais da nossa sociedade. Precisamos de mais SUS, de mais fortalecimento da Hemobrás, para resguardar a integridade da população brasileira pelo Estado, como deve ser. Não podemos aceitar que a vida do nosso povo seja tratada como moeda de troca. A vida não é negociável, e continuaremos a lutar por todos os meios possíveis para que o sangue dos brasileiros e brasileiras não seja mais um combustível queimado pelas engrenagens do capitalismo.
*Ana Pimentel é deputada federal (PT-MG)
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum