A violência na escola não é um evento isolado que deve ser tratado unicamente como uma questão de decisão pessoal do agressor. É importante iniciarmos por essa afirmação para não perdermos de vista que a violência na escola precisa ser analisada como resultado de políticas sociais e educacionais, ou seja, precisamos pensar sobre os contextos sociais, histórico e econômicos de uma sociedade que é estruturalmente violenta, principalmente quando recortamos a perspectiva de raça, gênero e classe.
O esgarçamento das relações sociais, econômicas e políticas na última década no Brasil, acentuado pelo aprofundamento das violências sociais, em razão das ausências e diminuição de políticas sociais no período da pandemia são fatores importantes de serem bem pontuados para a análise. A normalização da violência contra crianças, mulheres, negros e pobres também é um ponto para a pauta, bem como o submundo da internet que permite e estimula a violência.
É necessário considerar que a escola, que é a instituição social mais próxima das famílias nos territórios das cidades, paulatinamente tem se transformado no espaço que absorve todas as violências que os estudantes e famílias vivenciam em suas vidas.
Professores e gestores apontam em entrevistas, pesquisas e diálogos informais o quanto trabalham ameaçados, com medo e sob forte impacto profissional e emocional em razão do ambiente de violência que adentrou nas escolas brasileiras, com episódios de maior ou menor impacto presentes diariamente.
Soma-se a esse cenário a opção de alguns governos e de parcela da sociedade em negar a violência como fenômeno social que está diretamente relacionado ao modelo econômico que a sociedade brasileira adotou nos últimos ciclos e reforçar que a violência é fenômeno exclusivamente pessoal e se trata de fato isolado — uma perspectiva que tem se mostrado ineficaz e perversa. É apequenar a questão que a sociedade vive e assolar o cotidiano das escolas.
Essa escalada da violência na sociedade em geral e no interior das escolas em específico tem assumido contornos que nunca ganharam a dimensão noticiada atualmente. No entanto, as notícias sobre agressão entre estudantes e agressões voltadas a funcionários, professores e gestores se avolumam e tendem a ganhar ares de normalidade. Ou seja, tem sido cada vez mais comuns os casos de profissionais que sofrem agressões no exercício de seus ofícios e a situação de violência entre estudantes e familiares só aumenta.
Em 2022, num levantamento realizado pela Organização Nova Escola com 5300 professores, 80% relataram já ter sofrido agressão na escola. Um levantamento apresentado pelo portal de notícias Politize apontou que são registradas em média 108 ocorrências de violência nas escolas paulistas diariamente. Seguido de aumento exponencial de 52% de casos de ameaça e 77% de bullying nas escolas paulistas quando comparado com o ano de 2019.Outros estados brasileiros apontam situação semelhante de escalada.
Em pesquisa sobre o perfil do estudante brasileiro divulgada pelo Ministério da Saúde em novembro de 2022 aponta que 14,6% dos estudantes entre 13 e 17 anos relatam situação de violência sexual. Sobre segurança, a pesquisa mostra que 11,6% dos estudantes deixaram de ir a escola pois não se sentiam seguros e ainda 23% relataram práticas de bullying.
A escola que historicamente foi vista como espaço de aprendizagem e convívio harmônico entre os estudantes, famílias e profissionais tem sido transformada em um espaço que recebe e sofre com as múltiplas violências que ultrapassam os portões escolares. Entre os inúmeros fatores que levam a essa violência, não podemos categorizar que que são isolados, pois são interseccionais e complexos numa sociedade que se forja cada vez menos humanizada e distante de ações de promoção a equidade.
É importante destacar que os profissionais que atuam nas escolas brasileiras, com recorte específico do perfil dos professores, os dados das pesquisas recentes divulgadas pelo INEP mostram que 96,3% são mulheres e que 34,3% se declaram negras e o piso salarial é um pouco mais de 2 salários mínimos. Ou seja, é fundamental observarmos que a crescente violência no interior das escolas atinge mulheres, em certa medida negras e pertencentes a classe trabalhadora que tem sido proletarizada nas últimas décadas.
Pautar a violência nas escolas tem como desafio avançar nas questões que partem das análises sobre o perfil dos estudantes, das famílias e dos profissionais da educação. É fundamental que o debate paute as condições estruturais que as escolas e seus profissionais estão submetidos para atender as crianças e os adolescentes e como também refletem um tipo de violência institucional que nega soluções estruturantes.
A escola está se tornando um dos poucos espaços sociais que acolhe a população, que se relaciona com as famílias e que propõe ambiente dialógico e com garantia de direitos, contudo tem feito isso sozinha ou com pouquíssimo apoio dos governos, das instituições sociais e da população. A escola tem se tornado o alvo mais fácil para toda a violência que a sociedade está submetida, no entanto, é importante reforçarmos o que representa atacar as escolas.
Atacar as escolas e seus profissionais representa esgarçar os pactos civilizatórios que sustentam uma sociedade que, por meio da educação, ousa desfazer desigualdades, promover equidade e justiça social.
Atacar as escolas, seus profissionais e estudantes é o sintoma de uma sociedade que elegeu a educação como inimiga e que avança não apenas com armas sobre pessoas indefesas, avança sobretudo sobre um modelo de sociedade que ainda vê a escola como instrumento transformador de vidas e trajetórias e que consciente ou inconscientemente procura derrubá-la. A escola, em alguma medida, representa também as bases para outros modelos sociais e econômicos.
Os ataques às escolas não iniciam e nem terminam com facas ou pistolas, os ataques às escolas iniciam com precarização dos espaços, deslegitimação, desprestigio e desrespeito de seus profissionais, negação da ciência e desmonte da pesquisa e das profissões e no avanço de uma sociedade que reforça o pensamento extremista e intolerante.
Os ataques às escolas ocorrem diariamente no chão da vida quando uma professora perde o controle do currículo e é vista como uma “passadora” de apostila, quando é acuada por familiares que não aceitam a correção de uma avaliação ou quando reclamam que a criança precisa aprender sobre a história e a cultura dos povos africanos.
Os ataques às escolas estão presentes em cada relação que a família profere o pensamento “eu pago seu salário” e que mantenedores cedem à vil relação de coisificação das pessoas e mercantilização do saber. Quando temas sobre gênero, sexualidade e inclusão são excluídos dos livros e das aulas.
O cotidiano de gestores, professores e estudantes com medo das reações, das divergências e acuados sem poder dialogar demonstram o quanto a escola está sendo atacada. A escola é diariamente atacada em seu projeto civilizatório, pois é em sua natureza, em sua função social, o lugar que resiste e que tenta não sucumbir a banalização do mal.
A escola precisa voltar a ser reconhecida como o espaço de preservação da civilidade, de pactuação de direitos e protegida de todo o terror e intolerância que avançou no Brasil nos últimos anos. A escola precisa voltar a ser o centro da esperança de um país melhor.
É justamente pelo que a escola representa e pelo poder transformador que ela é atacada pelas parcelas mais intolerantes e reacionárias da sociedade.
A pergunta é: até quando a escola e as pessoas resistirão?
*Diego Moreira é Doutor e Mestre em Educação: História, Política e Sociedade pela PUCSP. Professor e pesquisador na área de Formação de Professores, Culturas e Subjetividades
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