“É preciso que fique bem claro. A dinastia de Bonaparte representa não o camponês revolucionário, mas o conservador; não o camponês que luta para escapar às condições de sua existência social, a pequena propriedade, mas antes o camponês que quer consolidar sua propriedade; não a população rural que, ligada à das cidades, quer derrubar a velha ordem de coisas por meio de seus próprios esforços, mas, pelo contrário, aqueles que, presos por essa velha ordem em um isolamento embrutecedor, querem ver-se a si próprios e suas propriedades salvos e beneficiados pelo fantasma do Império. Bonaparte representa não o esclarecimento, mas a superstição do camponês; não o seu bom-senso, mas o seu preconceito; não o seu futuro, mas o seu passado” (Karl Marx, O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte).
Depois de finalmente obtida, quase um século depois da formação de uma sociedade de massas no Brasil, uma dominação política de tipo hegemônica começou a soçobrar em junho de 2013. Assim, se os dois governos de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e os dois seguintes de Luís Inácio Lula da Silva (2003-2010) haviam conseguido aquilo que, durante décadas e décadas, uma parte do melhor pensamento social brasileiro julgava beirar o impossível, a saber, a construção de uma democracia representativa dotada de relativa estabilidade, o inverno de 2013 fez com que, digamos, tudo voltasse ao normal, acordando nossos sonhadores hegemônicos da ciência política e consortes de seus sonhos de uma noite de verão.
De lá pra cá, nessa década que nos separa das cruentas Jornadas de Junho, não obstante variações na dinâmica e ritmo do processo, os acontecimentos políticos se precipitaram vertiginosamente e, como se costuma dizer desde então, “não se tem um dia de paz nesse país”. O cotidiano modorrento de uma democracia asséptica e tecnocrática foi quebrado pelas mobilizações sociais multitudinárias. Após tempos se apresentando como “antipolítica” aspirando à preservação dos fundamentos de “tudo que está aí”, a política desmobilizatória do regime, até então hegemônico, contribuiu e mesmo estimulou para que, pelas fissuras abertas em junho de 2013, emergisse uma “antipolítica”, agora radical e mobilizatória, contra a superfície de “tudo que está aí”.
Após pouco mais de duas décadas propositalmente mantida sob o invólucro da técnica, a política neoliberal foi forçada a se “libertar” dele, a jogar fora seus rebuços, não sem antes tentar remendá-los com adornos “antipolíticos” cada vez mais vulgares e extravagantes, como capas forenses e fardas estreladas. Porém, quando se tenta uma insurreição reacionária contra os três poderes, tramada por militares e defendida por um ex-juiz senador, quando os jornalistas políticos são obrigados a se revezar em plantões de 24 horas e quando a palavra golpe finalmente é assumida no léxico midiático oficial, não há mais como negar que se está fazendo política e, que, portanto, esta sempre deitou raízes e foi praticada muito além das planilhas dos tecnocratas com suas decisões “meramente técnicas” e do ramerrão de um Parlamento de uma classe só. As Jornadas de Junho trouxeram a política de volta, ainda que, contraditoriamente, isso tenha sido feito, em grande parte, pela afirmação raivosa de um discurso contra os políticos e a política. Sem entendermos a forma como a “apolítica” democracia blindada e sua classe dominante se portaram diante de junho de 2013, não há como entender o levante militarista “contra os políticos” em janeiro de 2023.
Em outras palavras: de tanto se valer da ideologia “antipolítica” como forma de manutenção da apatia, os arautos da democracia blindada contrarreformista, quando acossados pelas mobilizações de massas por reformas (direitos), não fizeram senão apelar para uma versão radicalizada e mobilizada da sua própria ideologia, o que, ao fim e a cabo, com a eclosão do neofascismo, levaria à crise a sua própria democracia. Desse modo, o que queremos dizer é que a forma pela qual a classe dominante reagiu a Junho, ainda em junho, está diretamente ligada não só ao Golpe de 2016, mas também, e por conseguinte, ao bolsonarismo que, para salvar, ao seu modo destrutivo, o conteúdo de “tudo que está aí”, se volta contra a forma de “tudo que está aí”. Na medida em que, para derrotar um movimento pela ampliação de direitos, a burguesia brasileira hegemônica, em especial por meio de seus aparelhos midiáticos de hegemonia, disputou e, por fim, inverteu os rumos do próprio movimento, ela acabou por lançar as sementes da crise de sua própria hegemonia.
Há quase dez anos, ao junho autêntico e original, a burguesia opôs o seu junho, farsesco e artificial. A um movimento por reformas e mobilidade, ela opôs um outro, por contrarreformas e austeridade; a um que clamava por Saúde e Educação, ela opôs um outro, que exigia mais poderes aos juízes e procuradores em sua cruzada “contra a corrupção”; a um que reivindicava mais liberdade e redução no preço das passagens, ela opôs um que pedia “redução do número de ministérios” e passagem aberta para a repressão. A um que exigia melhorias na vida social, ela opôs um outro, com a divisa da “redução da maioridade penal”. Aos estudantes que perguntavam onde Amarildo estava, ela opôs os seus manifestantes cívicos com suas bravatas, quase todos já vestidos com as camisas da seleção; aos vândalos de ontem, ela opôs os vândalos de hoje. Enquanto as muitas e progressistas bandeiras originais eram diluídas nos atos e midiaticamente substituídas por outras reacionárias, o autêntico junho era adulterado por manifestantes que bradavam para que qualquer bandeira vermelha fosse imediatamente abaixada. A crítica a uma política que retirava direitos e tornava a vida insuportável nas grandes cidades se transformou em uma crítica genérica à política, a qual deveria ser agora feita por togados e militares.
Se o autêntico Junho seguiu nos anos seguintes, em especial nas greves “selvagens” de categorias precarizadas e nas ocupações de escolas contra Temer, nos parece inegável que o outro se fez presente tanto no lavajatismo iniciado em 2014, nas marchas antipetistas de 2015, no golpismo vitorioso de 2016 e, por fim, no bolsonarismo que ao poder chegou em 2018. Há uma década atrás, houve, portanto, dois Junhos. Um foi nosso, e o outro, deles.