Em uma semana, o Brasil viveu parte dos momentos mais marcantes de sua história. No domingo, primeiro dia de 2023, Lula consagra a vitória da democracia ao subir a rampa do Palácio do Planalto e receber a faixa presidencial das mãos de representantes do povo brasileiro, em sua diversidade. Já na primeira segunda-feira, a energia e a esperança seguiram fortes, com a celebração da recriação do Ministério da Cultura e a posse da Ministra Margareth Menezes - uma das mais importantes expressões da potência criativa do país, primeira mulher negra no mais alto posto da gestão cultural, a terceira contribuição importante da Bahia à história do Ministério (seguindo os legados de Gilberto Gil e Juca Ferreira). Ao longo da semana, inúmeras posses ministeriais foram deixando nítido que um novo Brasil estava nascendo…
Parecia inimaginável que, no domingo seguinte, o país passaria por um dos mais graves ataques à democracia de sua história. O golpismo bolsonarista promoveu inédita ação terrorista nos prédios dos Três Poderes, destruindo parte importante do patrimônio histórico, artístico e cultural da mais alta relevância para a nação.
Apesar de absolutamente fracassados em relação à patética tentativa de tomada dos poderes da República, os atos golpistas do dia 8 reforçaram o alerta para a necessidade de defesa radical da democracia e combate ao fascismo. Demonstram que, além da retomada de uma agenda de direitos, melhoria das condições de vida da população e fortalecimento das instituições democráticas, é necessária uma estratégia de disputa simbólica, de disputa de valores - uma disputa cultural.
Há de se combater a cultura fascista, antidemocrática, de desprezo às instituições, à ciência, aos direitos humanos, à diversidade e às artes, que sobrevive no corpo do país. Cultura esta que ameaça os valores civilizatórios mais básicos.
O terceiro Governo Lula tem o desafio de construir uma política cultural que promova valores democráticos. Desafio que é do novo Ministério da Cultura e da Ministra Margareth Menezes, mas não só: precisa envolver o conjunto das políticas públicas, das instituições democráticas e das forças sociais do país.
O debate sobre o papel do Estado na cultura
Do ponto de vista das políticas públicas culturais, nos 13 anos de governos Lula e Dilma, foi produzida uma ruptura paradigmática e institucional inédita no Brasil e na América Latina.
O paradigma de políticas culturais iniciado com Gilberto Gil e Juca Ferreira (e, hoje, hegemônico no país) é uma resposta importante aos regimes totalitários, em que o Estado é usado como instrumento para imposição de um modelo estético, ético e moral, que invisibiliza, persegue e violenta tudo aquilo que não se encaixa neste modelo (ilusório, diga-se passagem, dado que identidade absoluta é um mito a-histórico). Da mesma forma, trata-se de uma resposta ao populismo colonialista, ancorado na suposta tese de que o aparelho estatal teria como missão “levar cultura” para quem “não tem” (ou seja, a reprodução da hierarquia de capitais culturais que estrutura a sociedade global e é atravessado por outros capitais, especialmente o econômico e o social).
Por outro lado, o paradigma contrapõe-se ao modelo neoliberal, ao afirmar que o Estado tem obrigação de promover o melhor ambiente possível para a experiência cultural, inclusive combatendo desigualdades e salvaguardando manifestações culturais das ameaças impostas pela lógica do capital, da colonização e do imperialismo cultural.
Ou seja, a experiência brasileira representa uma síntese histórica entre os modelos liberais e os modelos totalitários: o reconhecimento dos direitos culturais e do papel do Estado, com garantia da autonomia e da diversidade. Síntese esta que faz do Brasil referência internacional, como pensamento, consolidado no Plano Nacional de Cultura. Como política pública de novo tipo, o programa Cultura Viva (representado pelos Pontos de Cultura) é uma das principais expressões da ruptura paradigmática e institucional no campo das políticas culturais, marcando profundamente a história cultural, política, econômica e social do país.
A história brasileira ensina que a dimensão cultural não pode ser menosprezada
O Golpe de 2016 trouxe inúmeras reflexões e ensinamentos aos setores progressistas e democráticos. Talvez um dos mais importantes seja de que é impossível pensar o Brasil sem pensar na dimensão simbólica de nosso povo. É mais impossível, ainda, transformá-lo sem disputar valores, visões de mundo e sem desenvolver uma nova sensibilidade e uma nova consciência coletiva. Sem o fortalecimento de uma cultura democrática, cidadã e de diversidade.
Por mais que tenhamos melhorado significativamente as condições de vida da população nos primeiros governos Lula e Dilma, esta melhoria não foi acompanhada de um projeto de promoção dos valores democráticos e civilizatórios. A ruptura paradigmática e institucional no campo das políticas culturais não contou com a centralidade e a escala necessárias para que pudesse impactar nas massas, dada a hegemonia de uma visão economicista e desenvolvimentista que marcou estes governos. O pleno emprego, a ampliação do acesso ao Ensino Superior, a compra da casa, do carro e da TV novos não foi acompanhada por uma perspectiva coletiva. Tais melhorias foram capturadas por leituras religiosas conservadoras, neoliberais, despolitizadas e até anti-políticas, que apresentaram as justificativas mais “plausíveis” ao povo brasileiro - e foi justamente nesta dimensão simbólica que se sustentou o golpismo lavajatista, avançando para o fascismo.
O Governo Bolsonaro refutou radicalmente o paradigma sustentado por Gil e Juca. Escancarou a inexistência de neutralidade estatal. Definiu a cultura como uma das principais trincheiras de afirmação de seu projeto totalitário, neoliberal, negacionista, armamentista, golpista, machista, lgbtfóbico e racista. A “guerra cultural” passou pela destruição das estruturas públicas de gestão, ataque aos direitos culturais e à diversidade. O Estado passou a só fazer cultura (sozinho), a se ausentar da sua missão como garantidor das condições de acesso aos bens e serviços culturais, e, pior, passou a perseguir e censurar parte importante das expressões culturais do país. Teve na cultura a dimensão de afirmação de um projeto autoritário e identitarista, inclusive como estratégia de dissimulação do modelo econômico neoliberal, que retirou direitos de trabalhadoras/es e piorou as condições de vida da população.
Uma política cultural que dispute valores na sociedade
Os desafios para reconstrução democrática são inúmeros. Não somente o restabelecimento da institucionalidade do Estado e das políticas públicas, um dos principais desafios do terceiro governo Lula é a construção de uma estratégia de intervenção simbólica, de promoção de valores democráticos. Não para um projeto político partidário, para afirmação de um determinado regime de Estado e modelo econômico. Mas, sim, para promoção dos valores básicos de uma cultura democrática, cidadã, de diversidade, de valorização da ciência, da ação coletiva e da não-violência.
Tarefa esta que compete ao novo Ministério da Cultura e à Ministra Margareth Menezes, mas a todo o conjunto de estruturas governamentais e políticas públicas, sob coordenação do Presidente: o Ministério da Justiça precisa combater a cultura armamentista, promovendo uma cultura de paz; o Ministério da Saúde precisa combater a cultura negacionista, promovendo uma cultura de valorização da ciência; o Ministério da Educação precisa combater a cultura autoritária e promover uma cultura de diversidade; e por aí vai.
Por isso, é necessário construir um governo que compreenda a importância política central da cultura e, assim, não a trate como algo setorizado, menor, mas que coloque a dimensão simbólica da vida social como prioridade nas estratégias emancipatórias fundamentais. É preciso pensar a cultura como central na reconstrução da democracia.
Precisamos de uma estratégia de transformação cultural para o país, a ser defendido e levado à prática pelo Presidente Lula, pela Ministra Margareth Menezes e todo o governo, assim como pelo conjunto dos setores democráticos e progressistas.
A cultura deverá ocupar um papel central na mobilização de novos imaginários e na afirmação de uma nova consciência coletiva, para construção de espaços comuns de convivência e na qualificação das relações sociais.
A transversalidade da dimensão cultural não pode ser apenas entre setores institucionais: tem que partir do reconhecimento da importância estratégica dimensão simbólica em toda a sociedade.
Precisamos retomar um processo de reconstrução e valorização da identidade nacional, de nossos valores éticos e estéticos mais profundos, de nossa ancestralidade, de nossas raízes históricas e de nossas memórias, que são múltiplas e singulares. Para voltarmos a ter orgulho da brasilidade, que nos projeta no mundo como nação potente e que tem muito a contribuir na superação dos grandes desafios globais. Nossa diversidade cultural e nossa biodiversidade são as nossas maiores riquezas e, como tais, devem estar no centro de nosso projeto de nação.
Radicalizar a democracia, descolonizar e despatriarcalizar a vida, promover a justiça social e a igualdade de direitos e oportunidades, e assumir nossa diversidade como um patrimônio são alguns dos grandes desafios para um projeto de desenvolvimento soberano e sustentável.
O papel do novo Ministério da Cultura
Quanto ao novo Ministério da Cultura, não se deve cogitar qualquer retrocesso das bases paradigmáticas e pelo importante legado de políticas culturais republicanas. Pelo contrário: é necessário o reforço da missão do Estado em garantir as condições de criação e produção cultural da própria sociedade no país. Mas, além da ampliação orçamentária para investimento em políticas culturais e editais públicos, é importante que o novo MinC venha a ter um papel mais ativo na disputa simbólica.
Os novos tempos exigem a criatividade e a ousadia que Gilberto Gil e Juca Ferreira tiveram na formulação de toda uma estrutura conceitual, programática e institucional no Ministério da Cultura a partir de 2003. Um dos desafios colocados à gestão da Ministra Margareth Menezes é a criação de uma ação estatal com capacidade de disputa simbólica - não comandada pela sua burocracia, mas de reinvenção do próprio Estado. De um Estado poroso, aberto, ventilado, atravessado pela sociedade.
O desafio, agora, pode ser superar a dicotomia “ou a sociedade, ou o Estado”, produzindo uma ação integrada e articulada. O Estado COM a sociedade.
É necessário radicalizar as esferas de participação. Promover a mobilização não só de agentes e organizações sociais que tradicionalmente atuam em esferas institucionalizadas. É necessária a elaboração de estratégias de participação digital, informal, sobre temas importantes da cultura brasileira, buscando mobilizar amplos setores da sociedade (para além do campo cultural organizado).
Os Comitês de Cultura, principal proposta do Presidente Lula ao longo da campanha, podem assumir este papel mais ativo, de Estado em movimento, de ação da sociedade civil com o Poder Público, para disputa cultural (sem ser confundidos com os Conselhos de direitos, já tradicionais nos sistemas de participação).
O novo MinC precisa convocar, urgentemente, a IV Conferência Nacional de Cultura. Um amplo processo de participação social, reativando as bases da cultura, promovendo a reflexão, o diálogo, a solidariedade e a ousadia para estruturação de um Plano Nacional de Cultura (PNC), que aponte os desafios para um novo ciclo cultural, em que a cultura esteja no centro da estratégia de país. Um dos debates mais importantes é a qualificação do Sistema Nacional de Cultura (SNC), em especial sobre a atribuição dos Entes Federados, visando definir competências, evitar sobreposições, lacunas, promover o desenvolvimento de arranjos produtivos regionais e qualificar políticas para contextos urbanos e rurais. O debate sobre atribuições dos Entes Federados será fundamental para implementação da Lei Aldir Blanc 2, que destinará R$ 3 bi anuais, nos próximos 5 anos.
O novo MinC precisa indicar estratégias para que a diversidade cultural brasileira seja protegida, reconhecida e valorizada, com capacidade de escala e impacto.
É fundamental a retomada, qualificação e ampliação de políticas para culturas de matrizes africanas, povos tradicionais, culturas populares, povos originários e políticas que promovam a diversidade racial, étnica, sexual e de gênero.
Neste sentido, a Política Nacional Cultura Viva tem um papel estratégico fundamental, por potencializar e mobilizar uma rede potente de grupos culturais em todo país, os Pontos de Cultura, que atuam cotidianamente nos territórios. Em diálogo com outras políticas culturais e demais estratégias governamentais, poderá ter um papel decisivo na afirmação de uma cultura democrática, de direitos, de promoção da diversidade e da não violência. Para tanto, é preciso que tenha escala e capacidade de impacto. É urgente que a política seja retomada, para que seja reativada esta rede potente de estímulo à criatividade, exercício da cidadania cultural, com uma ação educativa contracolonizadora e desmassificadora, de geração de autonomia, protagonismo e diversidade nos territórios, como projeto de sociedade. A Política Nacional Cultura Viva precisa ter a dimensão que o povo brasileiro, com mais de 200 milhões de habitantes, demanda. Para tanto, a Lei Aldir Blanc 2 terá um papel decisivo, com a definição de parâmetros para destinação dos recursos a partir de linhas programáticas da política nacional de cultura - por exemplo, a destinação de 25% do valor anual da LAB para a Política Nacional Cultura Viva (40% do valor destinados aos municípios e 10% do valor destinado aos governos estaduais).
Precisamos de uma política de educação e formação cultural que mergulhe a diversidade cultural brasileira em processos educativos (da educação primária à pós-graduação) e, para além da educação formal, promova processos de formação de público e de competências artísticas e culturais para além de profissionais do campo (como um direito social básico).
O Brasil precisa ser um país de leitores e leitoras com capacidade de reflexão, crítica e elaboração. Para isso, precisamos de políticas robustas para a leitura e para a escrita. Além disto, precisamos promover a ocupação dos espaços públicos e consolidação dos privados, estimulando a ampliação e descentralização dos bens culturais como museus, teatros, etc, entendendo-os como ferramentas fundamentais na formação cidadã e na constituição do direito à cidade, à memória e à identidade.
A Funarte terá um papel central na construção de uma nova política de artes para o Brasil. Precisa ter um um programa potente de circulação, promovendo o acesso da população à diversidade artística e movimentando as cadeias produtivas da economia da cultura - neste sentido, a LAB 2 também pode ter um papel decisivo, destinando uma parte importante dos recursos para estados e municípios, a partir de editais de circulação padronizados, como política nacional.
Uma das características de qualquer projeto de colonização é a produção de dispositivos que busquem manipular a memória coletiva de um povo, como forma de justificar as injustiças e violências, e glorificar os opressores. O fascismo bolsonarista atuou e atua intensamente nesta dimensão, atacando uma série de conquistas históricas. Busca invisibilizar e distorcer as memórias das populações afrodescendentes, as violências da escravidão e seus reflexos até os dias de hoje; o genocídio dos povos indígenas; as memórias dos crimes cometidos na Ditadura; as memórias da luta democrática e de construção de direitos no país. O governo Lula deverá fortalecer as políticas de memória e a preservação do patrimônio histórico e cultural, e vai precisar promover, de forma massiva, a releitura das memórias do país, como parte de sua reconstrução.
Por fim, é fundamental que o Governo Lula promova a democratização dos instrumentos de comunicação, garantindo a liberdade de expressão e artística, cuidando do seu caráter público, educativo, cultural, impedindo sua concentração nas mãos de poucos grupos empresariais. Precisaremos desenvolver um programa que transforme o acesso pleno à internet em um direito de todos/todas, e garantir o seu uso o mais amplo possível como um recurso na educação e na cultura.
*João Pontes é sociólogo, Diretor de Políticas Culturais e Participação Social da Secretaria de Cultura de Belo Horizonte, integra a Operativa Nacional do Comitê Paulo Gustavo e o Núcleo de Apoio às Políticas Públicas (NAPP) de Cultura da Fundação Perseu Abramo, tendo participado da elaboração do programa de governo de Lula na cultura e participado da equipe técnica do GT de Cultura do Gabinete de Transição. Foi Coordenador-Geral do Plano Nacional de Cultura no Ministério da Cultura, Diretor de Cidadania e Diversidade Cultural no Governo do RS e coordenador do projeto Escola Animada, no Polo Audiovisual da Zona da Mata de MG. joaoppontes@gmail.com
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum