O fato de os neofascistas bolsonaristas se lançarem contra a ordem para defenderem a própria ordem, isto é, o fato de pregarem a destruição da ordem política para salvarem, a sua maneira cruenta e distópica, a ordem capitalista, não só não nos torna, por óbvio, defensores desta última, como tampouco nos deveria fazer defensores da primeira. Que defendamos que todos os dispositivos disponíveis do regime de 1988 para conter o neofascismo devam ser usados não deve obliterar a percepção de que é esse mesmo regime, com todos os seus dispositivos, que desde a transição instituiu e preservou a tutela militar e demais traços bonapartistas na qualidade de reservas estratégicas da ordem, como também de que foi alimentado por ele que o neofascismo bolsonarista cresceu e se tornou capaz de tentar solapá-lo num belo dia de domingo.
Depois de terem dado um golpe no sufrágio universal de 2014, e de o terem perpetuado nas eleições de 2018, os homens do regime e seus finórios jornalistas se assustam diante de uma tentativa de golpe contra o próprio regime eleitoral do sufrágio universal. Depois de terem dado um golpe deblaterando contra o petismo e em nome de Deus, da família e da Pátria, os grandes proprietários do regime se espantam quando alguns médios proprietários tentam dar o seu próprio golpe contra o mesmo petismo e em nome da mesma santíssima trindade. Depois de terem cedido temporariamente o poder a uma lumpemburguesia miliciana, estranham quando esta tenta naquele ficar por meios lumpens e milicianos.
Depois de terem pedido a Moro para prender Lula, o que significava levar Bolsonaro à Presidência da República, se chocam quando, para impedir o segundo de governar, o terceiro, com o apoio do primeiro, tente um golpe para por fim à própria República. Depois de terem subvertido, com a ajuda dos neofascistas, as regras do seu próprio regime, os homens do regime democrático se apavoram quando este tenta ser subvertido por seus ajudantes de ontem. Em suma, depois de terem conjurado os demônios e soltado os cachorros contra a conciliação de classes, os nossos democratas tomam como uma insanidade que os primeiros não aceitem de bom grado voltar para as trevas e que os últimos não aceitem mais os comandos de ir para o canil.
Surpreendente mesmo é o fato destes homens terem sido surpreendidos quando um presidente golpista e violento, que se disse golpista e violento durante os quatro anos em que esteve no poder - mas que assim não podia ser chamado pelos democratas da grande imprensa - tenta um golpe e lança mão da violência. A democracia blindada fez da austeridade e da retirada de direitos um dogma e, em nome deste, desde as mobilizações golpistas de 2015, tolerou as seitas, por mais cátaras que fossem, desde que ao seu lado estivessem na sua cruzada contrarreformista. Agora, em nome do mesmo dogma, alguns cruzados querem novas cruzadas, mais contrarreformistas e mais sanguinárias, mas desta vez contra a mesma democracia que outrora os recrutara nos esgotos e miasmas digitais.
O neofascismo clama por menos e menos direitos, e por mais e mais violência, mas, dialeticamente, só pôde (e pode) florescer, só pôde (e pode) angariar apoio de massas, porque foi o próprio regime de 1988 que, desde sua tenra infância, colocou em marcha a retirada desses mesmos direitos e promoveu, crescentemente, a violência econômica, social e política. Os que acreditam que o regime democrático-liberal, em sua configuração blindada e contrarreformista, pode, de fato, fazer esboroar o neofascismo, estão, a sua maneira, corretos em clamar abstratamente por "ordem", "constituição" e "democracia", já que essas abstrações correspondem, de fato, a um conteúdo concreto, o regime político vigente - baseado na igualdade abstrata de um povo abstrato, convém lembrar.
De nossa parte, dos que acreditam que apenas as mobilizações populares e profundas melhorias sociais são capazes de cortar as raízes do mal, a defesa das poucas "liberdades democráticas" - o que inclui a repressão estatal aos neofascistas - que o regime democrático-liberal blindado ainda possui não deve nos fazer defensores desse mesmo regime, dessa mesma ordem. Afinal, não custa recordar - mesmo que para nós mesmos, e ao menos para nós mesmos -, que precisamos destruir os supostos inimigos do "tudo que está aí " justamente porque somos nós quem verdadeiramente queremos ir além (e não aquém, como eles) de tudo que está aí.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum