OPINIÃO

Um habeas corpus contra a fome no Brasil - Por Fernando Augusto Fernandes e Guilherme Marchioni

É salutar recordar que trata-se, sim, de assunto que demanda a atuação do Estado, o direito à alimentação compõe o rol dos direitos sociais estabelecidos na Constituição Federal.

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Somos arrebatados pela catastrófica informação de que 33 milhões de brasileiros estão passando fome. São 14 milhões de pessoas a mais do que o quadro de 2020, esse é um grave retrocesso à situação de insegurança alimentar vivida pelo país nos períodos anteriores a 2003, quando iniciou os programas Fome Zero e o Bolsa Família. Nem mesmo, o Auxílio Brasil, um mero retrofit do Bolsa família, consegue pagar uma cesta básica que, em média, está em R$ 700. 

De tudo isso poder-se-ia ir ao Supremo Tribunal com um habeas corpus coletivo. Explico.

O habeas corpus, que originalmente defendia-se liberdade individual, foi ampliado pela jurisprudência histórica para outras formas de ofensas processuais penais que poderiam gerar futura prisão.

Mais recentemente, o Supremo inaugurou precedentes em que admitiu habeas corpus em favor da coletividade. Assim, a corte constitucional assentou diretrizes a respaldar o maior espectro do habeas corpus, especialmente a existência de relações sociais massificadas, cujos problemas exigem soluções, que podem partir do judiciário, a fim de coibir ou prevenir lesões à liberdade de locomoção a pessoas determináveis que estejam incluídas no contexto de um grupo vulnerável.

A possibilidade de habeas corpus coletivo encontra precedente histórico em julgamento do Supremo Tribunal Federal, em que foi determinado a substituição da prisão preventiva de todas as mulheres presas grávidas e mães de crianças com até 12 anos de idade. O STF seguiu a mesma linha de raciocínio ao decidir em outro HC coletivo a substituição da prisão preventiva por prisão domiciliar para pais ou responsáveis por crianças menores de 12 anos ou pessoas com deficiência. Tratou-se de medida que determinou a revisão das prisões de encarcerados não identificados, desde que se encaixam na situação estabelecida na decisão.  
Um seguinte exemplo notável é o habeas corpus coletivo pelo qual foi considerada ilegal busca e apreensão coletivas em comunidades pobres do Rio de Janeiro. Julgado pelo STJ, o habeas corpus tratou sobre ordem judicial genérica que constrangia todas as pessoas que vivem nas comunidades e pleiteou a anulação de decisão que autorizou medidas de busca e apreensão indiscriminadamente para a entrada da polícia em qualquer residência. Ao se pronunciar durante o julgamento, foi precisa a manifestação do Ministro Rogerio Schietti Cruz ao observar que "é notoriamente ilegal e merece repúdio como providência utilitarista e ofensiva a um dos mais sagrados direitos de qualquer indivíduo — seja ele rico ou pobre, morador de mansão ou de barraco: o direito a não ter sua residência, sua intimidade e sua dignidade violadas por ações do Estado, fora das hipóteses previstas na Constituição da República e nas leis".

É salutar recordar que trata-se, sim, de assunto que demanda a atuação do Estado, o direito à alimentação compõe o rol dos direitos sociais estabelecidos na Constituição Federal, correspondendo a um Direito Fundamental esculpido na ordem democrática. Não se pode mais esquivar das garantias civilizatórias determinadas na CF. 

Daí que se diz ser necessário nos dirigirmos ao Supremo Tribunal Federal, para que a maior corte constitucional dê atenção à eficácia plena das normas constitucionais, para fazer valer os direitos humanos que o Estado deve garantir, inclusive o direito à alimentação adequada. Diga-se, aliás, como lembrete aos ministros da Corte que buscam na religião uma orientação ao seu modo de julgar, que Jesus tratou a todos como irmãos, lutou contra fome ao dividir e multiplicar o pão e é o grande mártir contra a opressão daquele que sofrem. Assim, se o executivo não garante ao cidadão brasileiro o mínimo de condição - "a gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte", saúde, educação, trabalho moradia, segurança - afinal, deve o judiciário intervir, como diz, o art. 3º da Constituição Federal, o objetivo fundamental da República é construir de uma sociedade livre, justa e solidária, erradicar a pobreza, e reduzir as desigualdades sociais.