O PL do Veneno, que será analisado pelo Senado Federal, traz graves retrocessos no arcabouço regulatório de agrotóxicos, em um país que é o quarto maior produtor de grãos e o que mais consome esses produtos no mundo. O tema ganha maior relevância e complexidade em razão do avanço da política de Bolsonaro para o setor, responsável, em apenas dois anos, pela liberação de 30% dos mais de 3 mil agrotóxicos comercializados no país.
É inegável a importância dos agrotóxicos no controle de pragas e doenças que atacam a lavoura, com consequente aumento da produtividade por área plantada. Mas, é justamente a capacidade desses produtos químicos de agirem sobre a atividade biológica dos seres vivos, que requer um olhar atento dos órgãos de saúde e do meio ambiente sobre o tema. Afinal, no caso dos agrotóxicos, a linha que separa os benefícios agronômicos e os riscos para a vida é muito tênue.
De acordo com a Organização Internacional do Trabalho, agrotóxicos causam, em países em desenvolvimentos, 70 mil intoxicações agudas e crônicas que evoluem para óbito por ano. Outros sete milhões de casos de doenças agudas e crônicas não fatais estão relacionados a esses produtos. É ampla a literatura científica que associa agrotóxicos ao desenvolvimento de câncer, malformação e problemas no desenvolvimento intelectual e físico das crianças, entre outros. E, no Brasil, um terço dos agrotóxicos utilizados inclui alguma substância proibida pela União Europeia.
Por isso, o legislador assegurou uma atuação tripartite, envolvendo órgãos da agricultura, do meio ambiente e da saúde, na liberação de agrotóxicos. Esse trabalho conjunto procurou criar um colchão protetivo, em que um agrotóxico só poderá ser utilizado se comprovar eficácia agronômica, mas também se não destruir o meio ambiente, se for seguro para os trabalhadores rurais e não contaminar os alimentos ou deixar resíduos em quantidades tóxicas para os consumidores.
Nesse sentido, é grave que o PL do Veneno proponha a retirada dos órgãos da saúde e do meio ambiente do processo de regulação de agrotóxicos. É a Anvisa, por exemplo, que estabelece os equipamentos de proteção individual que devem ser utilizados pelos trabalhadores rurais na aplicação e no manejo de um agrotóxico e os limites máximos de resíduos permitidos em alimentos. O Ibama realiza atividades como a verificação do uso de agrotóxicos em diversos ecossistemas e a classificação quanto ao potencial de periculosidade ambiental.
O desmonte do sistema tripartite de análise é um erro ao relegar à saúde e ao meio ambiente o papel secundário de meros órgãos consultivos do processo, ignorando os efeitos nocivos dos agrotóxicos à vida. É evidente que a centralização do processo apenas no Ministério da Agricultura enviesa o debate em favor exclusivo dos interesses do agronegócio e dos fabricantes de agrotóxicos, como aponta o temerário mecanismo de registro temporário, previsto no PL.
Outro ponto nevrálgico é o fim da proibição expressa de agrotóxicos com características teratogênicas, carcinogênicas ou mutagênicas. Merecem destaque negativo ainda a não obrigatoriedade de registro de agrotóxicos destinados à exportação e flagrante inconstitucionalidade de restringir da atuação normativa e fiscalizatória dos estados e municípios sobre esses produtos.
As flexibilizações propostas no PL do Veneno estão na contramão do mundo desenvolvido, que tem caminhado para uma agricultura sustentável e com tecnologia agregada, que permite o uso de pesticidas menos. A experiência internacional nos mostra que é possível conciliar desenvolvimento agronômico, com a preservação da saúde e do meio ambiente. O Brasil não pode ser refém de um agronegócio ultrapassado e predatório, que não tem qualquer compromisso com a preservação da vida e com as gerações futuras.
*Rogério Carvalho é senador pelo PT-SE, médico e doutor em saúde coletiva pela Unicamp