ENERGIA

As problematizações do setor nuclear brasileiro – Por Rogério Mamão e Sérgio Filgueiras

O setor nuclear brasileiro, apesar de ter vivido uma pequena expansão nas últimas décadas, vive a angústia de que precisa crescer mais para atender melhor à sociedade brasileira

Foto: Eletronuclear.
Por
Escrito en DEBATES el

O setor nuclear brasileiro, apesar de ter vivido uma pequena expansão nas últimas décadas vive a angústia de que precisa crescer mais para atender melhor à sociedade brasileira. Angústia que se estende por todas as áreas que o constituem ou são a ele relacionadas.

Por “nuclear” entende-se o conjunto de todas as atividades que lidam com ou que envolvem o urânio e as radiações chamadas ionizantes, aquelas que se originam do núcleo de um átomo. Estão aí abrangidas a produção de energia (eletricidade ou propulsão de um navio ou submarino), a medicina nuclear, a conservação de alimentos, os usos industriais, além dos cuidados com as pessoas e o meio ambiente, afetados pelas, ou monitorados a partir das radiações.

Sobre a produção nucleoelétrica, hoje na empresa Eletronuclear vinculada ao Ministério das Minas e Energia, trabalha-se (mas sem um prazo real) para concluir a usina Angra III. Novas unidades são previstas nos planos de longo prazo do Governo Federal, mas faltam perspectivas concretas de investimentos, ao passo em que os países desenvolvidos investem recursos vultosos e para rápido retorno em novos conceitos de pequenos reatores modulares. São várias dezenas de diferentes modelos que disputam a primazia do mercado já para a próxima década.

O Brasil não participa dessa complexa e sofisticada corrida tecnológica e aguarda de forma passiva escolher de quem comprará seus futuros pequenos reatores modulares. Conta, quem sabe, com o projeto do reator para propulsão do submarino nuclear brasileiro, em desenvolvimento já há cerca de 40 anos pela Marinha e, agora, por sua empresa de engenharia, a Amazul. Um projeto com um conceito semelhante aos reatores de Angra, do tipo de água pressurizada, e que talvez, a depender do que surgir de novo pelo mundo, ainda poderá ocupar algum lugar entre esses latifúndios.

Ressalte-se que novos e velhos reatores precisam de novos combustíveis para atender às demandas de eficiência e segurança, seja utilizando o urânio enriquecido, com a tecnologia já aplicada nas Indústrias Nucleares do Brasil – INB, seja com a aplicação do, até agora, quase inútil, tório. Mas nem só de combustíveis vivem os reatores, pois também precisam ser resfriados e entregar calor de forma eficiente. E, para isto, podem utilizar, por exemplo, sais fundidos ou chumbo derretido, desafiando e inspirando novos materiais e composições inovadoras.

Seja como for, os reatores hoje precisam do urânio. E este mercado de extração, beneficiamento, comercialização e de enriquecimento tem sido instável ao longo das décadas, balançando ao sabor das políticas energéticas, da geopolítica internacional e das decisões depois de cada desastre. Dessa forma, a angústia anterior chega ao setor de extração mineral, já que, desde 1984, o Brasil se sabe detentor de grandes reservas minerais, mas patina na solução dos problemas estruturais e acrescenta ao balançar internacional suas próprias idiossincrasias: cada governo com uma política diferente.

É preciso aqui dizer que, no mundo, a indústria nuclear sempre está associada à existência e coalisão com instituições de pesquisa e desenvolvimento, até porque os detentores de tecnologia só as cedem àqueles com capacidade própria para desenvolve-las. Para estes, os demais que comprem o pacote pronto.

Ou seja, manter a capacidade de compreender os fenômenos envolvidos, de perscrutar aqueles ainda não revelados e de transformar o conhecimento em riquezas e bem-estar está na base da inovação e da força de qualquer indústria e de qualquer nação que queiram ser fortes. No campo da energia nuclear isso não é diferente e aqui o Brasil patina há décadas.

Suas instituições de C&T na área nuclear minguam a olhos vistos e já veem seu fim no horizonte, reduzidas a pouco mais da metade do pessoal permanente existente há uma década e recheadas de pessoal a título precário, sem segurança social e sem perspectivas de continuidade. Embora gigantesco esse não é o único problema: há décadas a indústria nuclear brasileira – toda ela estatal – anda de costas para as nossas instituições de pesquisa – todas elas também estatais.

Sem vínculo com os grandes – e letárgicos – projetos de grande porte do Governo Federal na área nuclear, os institutos nucleares de C&T ocuparam-se em desenvolver conhecimentos, produtos e serviços nas chamadas ‘aplicações das radiações’. O destaque mais significativo está nos medicamentos radioativos utilizados em todos os procedimentos da medicina nuclear. Todos os anos, cerca de 2 milhões de brasileiros de valem dos esforços dos técnicos e cientistas brasileiros.

Essa é uma ação que não tem a ver com reatores de produção nucleoelétrica, tipo Angra, mas que se vale de reatores de pesquisa para produzir seus resultados. E também nesse campo o Brasil está atrasado, pois não consegue oferecer a tempo e a hora serviços de medicina nuclear para a população empobrecida, concentrando o serviço nos grandes centros e no atendimento privado. O SUS atende uma gama significativa de exames complexos, mas não atende essa necessidade. Assim, o pobre que tem câncer fica sem o atendimento mais eficiente.

No Congresso Nacional tramita uma PEC para quebrar de vez o monopólio na produção de radioisótopos, base para os radiofármacos. Ou seja, discute-se a estratégia de quebrar a produção, porque a comercialização já deixou de ser monopólio há quase 20 anos. Mas, há dúvida se uma empresa privada queira possuir e operar um reator nuclear de pesquisa em território brasileiro, equipamento necessário, por exemplo, à geração do tecnécio-99m, o radioisótopo utilizado em mais de 80% de todos os procedimentos de medicina nuclear no país, pois o investimento seria muito vultoso. Mas a grande pressão é para permitir a importação e manipulação local, antes da comercialização, o que hoje é proibido.

E também aqui o Brasil marca passo. Tendo iniciado em 2007 o projeto de implantação de um novo reator nuclear de pesquisa, o Reator Multipropósito Brasileiro, fundamental à independência na produção dos principais radiofármacos, ainda não sabe nem mesmo de onde tirará os US$500 milhões necessários à sua conclusão. Só uma certeza está consolidada: a de que o país não é mais capaz de projetar um reator de pesquisa, tendo contratado uma empresa argentina para essa tarefa. Assim, é preciso ver que, sem megalomania e com persistência e constância, a Argentina soube desenvolver uma sólida e reconhecida competência nuclear.

Mas, na exploração mineral há, ainda, outros problemas não destacados aqui. Embora não digam respeito exatamente à indústria nuclear, alguns minerais estratégicos são historicamente ligados às instituições do campo nuclear, já que estão, em geral, associados a minerais radioativos, como é o caso dos Elementos de Terras Raras. Por isto, demandam cuidados específicos no seu manuseio e atenção do Estado sobre seus processos e riscos.

Tecnologia para separar e purificar esses elementos, hoje estratégicos, o Brasil teve, não tem mais e luta para retomar essa capacidade. Quando, no início da década de 90, a China inundou o mundo com produtos bons e baratos de terras raras, o Brasil – como o mundo ocidental – jogou fora o que sabia fazer. Agora o Governo Federal tenta incentivar a retomada, mas não investe de forma efetiva. O único investimento marcante no Brasil nessa área, nos últimos 30 anos, é um laboratório-fábrica de imãs de terras raras, em Minas Gerais. Mas, que o governo estadual optou recentemente por vender, antes mesmo de concluir o projeto.

Em todo o mundo, a área nuclear sempre foi demandante de materiais mais resistentes e adequados à segurança, razão pela qual desenvolveu reconhecida capacitação na pesquisa de novos materiais, especialmente os cerâmicos e as ligas metálicas. Essa mesma capacitação vem sendo empregada no Brasil, nos estudos com nióbio e com grafenos, campos onde os institutos de pesquisas nucleares têm dado sua contribuição. Resta saber se esta é a sua função ou se esses spin-offs podem ser entendidos como parte da sua missão institucional. Se não for, o que então será?

Chega-se, para concluir essa digressão, à decisão de se criar no Brasil a Autoridade Nacional de Segurança Nuclear – ANSN, ficando a antiga e histórica Comissão Nacional de Energia Nuclear – CNEN com a maioria de seus institutos de pesquisa, cuidando agora do desenvolvimento, dos serviços e, por enquanto, da produção de radiofármacos, além da formação especializada na área nuclear.

Assim, a comunidade científica do setor olha pelo retrovisor e teme o risco de ver repetida – agora ao inverso – a ação que, em 1988, extinguiu a Nuclebrás e deixou as ações de P&D da CNEN ao léu.

Diante de tudo isto, fica a questão: qual papel caberá à Nova CNEN? Haverá uma política nuclear que a integre nas prioridades nacionais? Isto se o Brasil conseguir estabelecer e perseguir prioridade na área nuclear. Lembrando que, seja o que for, é preciso suporte constante, visibilidade, apoio social e persistência nesta construção.

*Rogério Mamão Gouveia é analista em ciência e tecnologia - jornalista da Comissão Nacional de Energia.
*Sérgio Almeida Cunha Filgueiras é tecnologista do CDTN/CNEN.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.