ENTRE CRISES, A ESTÉTICA

Semana de 1922 convida a uma renovação das brasilidades

Passados cem anos da Semana de Arte Moderna, nossa crise, política, social, institucional, econômica, não deixa de ser também estética. Ou por uma estética do reverso

O Theatro Municipal de São Paulo foi palco da Semana de Arte Moderna de 1922, evento que mais tarde se consagraria no campo cultural brasileiro Créditos: Rovena Rosa/Agência Brasil
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“O sapo-tanoeiro, / Parnasiano aguado, / Diz: ‘— Meu cancioneiro / É bem martelado. / Vede como primo / Em comer os hiatos!’” Ironia, paródia, sapos... Foi, como sabemos, com os versos desse poema e sua perspicaz sátira que Manuel Bandeira, declamado por Ronald de Carvalho, daria sua tônica antipassadista e se uniria aos demais inovadores daquela Semana que não teve ocaso.

Recordar esse poema-piada, ou tantas outras produções daquela geração de modernistas, é recordar também uma expressão de gênese de um recorte de Brasil que, à distância de 100 anos de sua independência política, se reinventava e se permitia abrir portas e janelas para uma mudança em valores estéticos, para um novo frescor na cultura, no pensamento crítico e no discurso. Lição que, sem dúvida, o país de hoje necessita — e com urgência — reencontrar.

As propostas da Semana de Arte Moderna, nós o sabemos, não foram bem recepcionadas à época. Basta lembrar as vaias que o texto de Bandeira e as apresentações em geral, em quaisquer materializações, ensejaram. Mário de Andrade, em balanço 20 anos depois, diria que, sob tanta arruaça e protestos, só poderia atribuir sua atuação no evento a um autêntico delírio. A imprensa, igualmente, deu pouca atenção ao grupo concentrado no Theatro Municipal de São Paulo e ainda lhe endereçou pechas como a de “futuristas endiabrados”. Aqueles passos de 22 também não significaram a voz literalmente primeira ou exclusiva de uma postura de avant-garde em nossas terras. Mas é fato que se consagrariam como marco de uma revolução que ganharia terreno entre nós, plantando novos modelos de brasilidade.

É precisamente essa estética, e seu espírito condutor, que se contrapõe profundamente a este Brasil tosco e caricato que, em certa medida, nos tornamos passados 100 anos daquela aguda experiência renovadora. E digo “em certa medida” para ser justo, porque sabemos que não é exatamente uma maioria numérica que representa uma alma “non grata” na realidade nacional de hoje. Mas seus adeptos, é um fato, se espalharam, retiraram as máscaras — as metafóricas bem antes das sanitárias — e se projetaram em várias esferas de poder e de expressão.

Estética. Esse parece um campo-chave para compreendermos nosso país em seus descompassos atuais. Isso porque nossa crise, política, social, institucional, econômica, não deixa de ser também demarcada por essa esfera. Ou, diga-se por outra, por uma estética do reverso, se assim preferirmos. O grotesco e o ridículo, quando não o próprio ultraje, em gestos, posts, manifestações públicas, discursos, decisões oficiais etc. converteram-se em paradigma para diversos nomes da política. E o modelo vem sendo incorporado e adaptado também por pessoas comuns e por certos influenciadores. Gerou-se, em última análise, um país anômico. Páginas dos nossos noticiários trazem disso um farto exemplário.

Michel Foucault já assinalava, como se lê em seu curso “Os anormais”, que a mecânica de poder assentada no grotesco “é antiquíssima nas estruturas, no funcionamento político das sociedades”. A princípio, podemos tender a ignorá-la, a vê-la como inócua — ou, simplesmente, como merecedora de memes. Mas ela pode vir a produzir efeitos nefastos. Pode se converter até mesmo no que Achille Mbembe define como necropolítica. É o que temos visto ao nosso redor.

Nossa face grotesca se mostra, igualmente, autoritarista e reacionária. Brasília, neste caso, capital filha da modernidade de mentes como JK e Niemeyer, cidade que viu ser dada à luz nossa moderna Constituição de 88, hoje soa em parte como expressão-mor de neoatrasos, de retrocessos e empenhos por desmantelos da coisa pública. Lá ou fora, até acenos a totalitarismos chegam a entrar em cena — e ainda há quem peça ou proponha compreensão para isso (!).

É certo que precisamos superar o canto de sapos-tanoeiros — que já são hoje de um outro nível e escopo, não literários —, escancarar nossas janelas, receber uma lufada que nos ajude a retomar o trajeto vinculados ao contemporâneo e aos desafios da vida concreta. Cumpre voltarmos a ser — aos olhos do mundo e, antes, aos nossos próprios olhos — aquele Brasil que procura dar certo. Que não abre mão de suas utopias e lutas. Que se orgulha de si. Precisamos, em nosso 22, restaurar a beleza de nossas brasilidades.

*André Sampaio é pesquisador, autor e editor de livros.

** Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum