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Ser e permanecer defensora de Direitos Humanos – Por Júlia Veloso dos Santos

A folha da juventude e da maturidade caminham lado a lado

Júlia Veloso dos Santos.Créditos: Arquivo pessoal
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A luta por direitos sempre esteve ao meu redor. Desde criança me via envolta de lideranças sindicais, figuras políticas, movimentos sociais. Apesar da tenra idade, já carreguei muita bandeira nessa vida, seja na luta dos professores, na luta dos estudantes, ou na luta pela aprovação da Lei da Ficha Limpa. Já tinha muitos anos de Grito dos Excluídos nas costas quando me propus a trabalhar com aquilo que sempre defendi: direitos humanos.

Durante um estágio no sindicato de professores da universidade em que me graduei, vi como uma simples canetada do Estado pode virar a vida de um professor de ponta cabeça. Em um dia você tem um cargo público e estabilidade, no outro está desempregado. Nessa confusão toda gerada por um ato irresponsável de um governador, vi professor largar a universidade e virar dono de bar, e também vi professor fazendo novena para que o concurso público saísse logo. Já estava no mestrado quando me debrucei sobre os dramas vivenciados por comunidades vazanteiras que tiveram seu território expropriado pelo Estado com a criação de unidades de conservação, no Norte de Minas Gerais. Quando pisei aquele chão barranqueiro e ouvi suas histórias, entendi que a minha viagem de quilômetros pra chegar naquele território não poderia ser apenas para produzir uma dissertação de cento e poucas páginas. Eu não podia parar depois daquilo ali. Trabalhar com o que se acredita tem um quê de encanto, pois faz com que o sujeito permaneça ocupando aquele espaço não para simplesmente ter um trabalho digno, ou pelo dinheiro, também importante, mas por respeito a seus princípios, para expressar a sua essência. Prova disso, foi a minha experiência anterior em movimentar processos de execução fiscal, quando ainda na graduação estagiei na Procuradoria da Fazenda Nacional, onde não consegui permanecer por mais de 6 meses em meio a procuradores federais arrogantes e estagiários competitivos.

Depois de alguns tantos outros caminhos percorridos, cá estou eu, fazendo aquilo que acredito, me colocando no mundo em um lugar que sempre entendi ser meu dever ocupar. Atualmente, coordenando um equipamento social regional de proteção e promoção de direitos humanos, experiência que vem fazendo brotar em mim um jardim inteiro de sentimentos. É nessa lida que tenho acumulado vivências não apenas como trabalhadora, mas principalmente como defensora de direitos humanos.

E ser trabalhadora, defensora de direitos humanos, nunca foi uma lida fácil. As lideranças sindicais que convivi ainda na infância me mostravam isso no olhar cansado, no lamento indignado, na queixa esperançosa. E eu não me refiro às agruras inerentes ao trabalho com luta por direitos: baixa remuneração e carência de infraestrutura, sol na moleira nas marchas pelas ruas, reuniões de articulação infindáveis ou o eterno desgaste com o Poder Público. O que é verdadeiramente difícil é trabalhar com a dor do outro e é nessa lida que a gente se descobre ainda mais humana.

A dor do outro dói na gente, e isso provoca uma dualidade de sentimentos. Por um lado, a preocupação de se manter distante o suficiente do caso a fim de ter condições de aplicar a técnica de forma imparcial, como o faz um pesquisador em relação a seu objeto de pesquisa, para guardar isenção. De outro, a preocupação de cair na naturalização involuntária de situações inaceitáveis, e o medo de se tornar insensível diante violações de direitos tão cotidianas. Há que se fazer uma vigília constante para não perder a humanidade nem se tornar demasiadamente humano a ponto de atropelar protocolos e fluxos já estabelecidos.

Ah, os protocolos e fluxos. Estes também nos colocam em grande contradição. Se por um lado organizam nosso trabalho e nos ajudam a produzir indicadores e alcançar as metas dos planos de atividades, por outro engessam nosso trabalho. A lida com direitos humanos nem sempre cabe num gráfico ou numa planilha pré-estabelecida e explicar isso para o financiador, ou para o gestor que nunca trabalhou diretamente na ponta, pode ser bastante exaustivo. Por vezes, o trabalhador defensor de direitos humanos se pega fugindo da metodologia que ele próprio construiu pra conseguir mitigar a situação de violência em que o outro se encontra. Sim, mitigar, porque a cessação da situação de violência nem sempre é possível de forma imediata.

O apego à técnica e à forma tem que ser dosado a ponto de não se chegar a determinadas situações, como, a título de exemplo, impedir o acolhimento de pessoas em situação de rua num abrigo público simplesmente porque elas não estão portando seu documento de identificação, fato corriqueiro na rede socioassistencial aqui em minha cidade. Mas também não se pode desapegar a ponto de levar aquelas pessoas todas pra dentro de sua própria casa, algo que também já aconteceu por aqui. Como bem disse um colega de trabalho dia desses, não se pode deixar com que o espontaneísmo criativo inviabilize a ação emancipadora. É preciso proteger o sujeito ou a sujeita, mas também deixá-los serem donos de si e de sua própria história.

Todos os dias uma família passando fome, uma mulher sendo agredida, uma comunidade sofrendo despejo, uma pessoa necessitada sendo negligenciada pelo Poder Público, uma pessoa negra sofrendo racismo, um grande empreendimento destruindo um território tradicional. O que se enfrenta é a escassez de alimentos no prato de quem vive no país que é um dos maiores produtores de alimentos do mundo. O Brasil que vivemos é o país em que a Ditadura Militar ainda é lembrada por alguns – agora me parecem ser muitos - com saudosismo e nostalgia, mesmo com todo o seu horror tendo sido mostrado e comprovado nas Comissões de Verdade e Memória.

Aqui, o defensor e a defensora de direitos humanos não podem querer ver o seu trabalho e sua luta cessarem as situações de violência de forma imediata. É como trabalhar, trabalhar, e não poder ver o resultado acontecer. Nossos problemas estão enraizados e só serão resolvidos daqui algumas gerações – há quem duvide de que o serão - e esse é mais um desafio de quem trabalha com direitos humanos. Essa etapa do trabalho, a cessação das violações, é a etapa que mais se quer alcançar, e também aquela que menos se alcança.

Construir o bem viver parece desafiador e, a depender do contexto, utópico demais para ser almejado. E o defensor de direitos humanos por vezes se vê frustrado quando depois uma árdua caminhada não encontra os sinais da tão desejada sociedade do bem viver. O brotar da semente nem sempre vai acontecer diante de nossos olhos. Em alguns casos, somente o verá a próxima geração.             

E é por isso que quando se escuta o Milton Nascimento, com seus bem vividos e cantados 80 anos, saudando a democracia em sua última apresentação nos palcos, o coração se aquece. Não há outro caminho para se conquistar direitos e se fazer valer tantos outros senões pela democracia. Uma lágrima brota ratificando: há que se cuidar da vida, há que se cuidar do mundo. E quem cuida da vida, cuida do mundo, para que dê flor e fruto, somos nós, defensoras e defensores de direitos humanos, na dor e na delícia de lutar e se entregar pelo que se acredita!

*Júlia Veloso dos Santos atua como Coordenadora do Centro de Referência em Direitos Humanos - CRDH Norte/Cáritas e advogada, em Montes Claros/MG. Mestre em Planejamento Urbano e Regional pelo Programa de Pós-graduação em Sociedade, Ambiente e Território (UFMG/UNIMONTES - 2018; Bolsista CAPES), graduada em Direito pela Universidade Estadual de Montes Claros - UNIMONTES (2015). Atuou como pesquisadora do NIISA - Núcleo Interdisciplinar de Investigação Socioambiental e do Grupo de Pesquisa Nova Cartografia Social do Brasil Central é articuladora estadual do Movimento Nacional de Direitos Humanos em Minas Gerais, MNDH-MG.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.