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Gal Contracultural – Por Romulo Mattos

Destaco uma faceta não citada no resumo de sua trajetória, e que foi especialmente relevante do ponto de vista político: a de símbolo da contracultura brasileira nos anos 1970

Créditos: Manu Scarpa/Divulgação
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A morte de Gal Costa foi uma notícia triste para a arte brasileira, por desfalcar a linha de frente da MPB, entendida aqui não apenas como um estilo musical, mas também como uma instituição sociocultural que “desenvolveu meios de difusão próprios, critérios específicos de julgamentos de valor, um panteão de gênios criadores e um cânon próprio de canções paradigmáticas” (NAPOLITANO, 2007, p. 140). Lançado em 1967, o primeiro disco gravado por Gal, em dupla com Caetano Veloso (1997, p. 106), foi por ele definido como um tipo de “João-gilbertianismo radical”, combinado a certa originalidade oriunda mais das limitações dos estreantes do que de sua inventividade, além de ter ignorado o sotaque jazzístico e incluído um toque regional. A afinação e a beleza da emissão da cantora já impressionam, mas no ano seguinte ela se transformou na principal figura feminina do movimento tropicalista, que releu a tradição da música popular brasileira à luz do pop/rock internacional e da experimentação de vanguarda. No plano discursivo, criticou amplamente a modernidade brasileira, por meio da contestação de construções culturais dominantes, e recusou a visão do povo como agente da transformação revolucionária, em prol da busca dos sentimentos cotidianos das pessoas comuns. Em termos comportamentais, dialogou com temas da contracultura, como raça, sexo, sexualidade e liberdade pessoal (DUNN, 2009, p. 19-20). Foi nessa época que a jovem caracterizada pela voz lindíssima e pela figura doce se empoderou ao desafiar o público hostil ao chamado “som universal”, no IV Festival de Música Popular Brasileira da TV Record. Ela surpreendeu até o amigo Caetano ao se apresentar com indumentária hippie e cantar de forma gritada, como Janis Joplin. Já no fim dos anos 1970, Gal alcançou o sucesso de massas ao vender mais de um milhão de cópias de Gal Tropical (1979), não sem antes ter conquistado um disco de ouro pelas 100 mil unidades comercializadas de Água Viva (1978), e flertado com a popularidade em nível nacional com “Modinha para Gabriela” (Dorival Caymmi), tema da novela Gabriela (1976), da TV Globo. Na década seguinte, a sua voz se manteve como uma das mais populares do Brasil e, pelo conjunto de sua obra, Gal ficou na memória nacional como uma diva da MPB.

Este texto destaca uma faceta não citada neste resumo de sua trajetória, e que foi especialmente relevante do ponto de vista político: a de símbolo da contracultura brasileira nos anos 1970. Esse movimento político-social estava relacionado com uma juventude geralmente oriunda das classes médias urbanas, informada, politizada e atuante nas décadas de 1960 e 1970. Era contrário à “velha ordem”, ou ao establishment, e valorizava a ecologia, as minorias sociais, o uso de drogas, as questões religiosas, o orientalismo, a psicanálise, a bissexualidade etc., ao passo que certos intelectuais brasileiros passaram a incorporar ao seu arsenal crítico as leituras de Franz Fanon, W. Reich, Norman Brown, Edgar Morin, Marshall McLuhan, Hermann Hesse, poetas beats e Norman Mailer (COELHO, p. 221, p. 2010). 

Conectado à contracultura, havia um trecho da Praia de Ipanema, no Rio de Janeiro, entre as ruas Montenegro e Farme de Amoedo, onde foi construído um píer para transportar a tubulação de um emissário submarino de esgoto, em 1970. Em cima da areia amontoada que havia sido dragada do fundo do mar foi constituído um território considerado livre pelos seus frequentadores, num período em que a ditadura comandada pelo carrasco Emílio Garrastazu Médici estava no auge e promovia o vínculo entre o modelo econômico do “milagre” e a repressão política. Esse pedaço do litoral carioca ficaria conhecido como Dunas da Gal (ou Dunas do Barato), em referência a sua frequentadora mais ilustre, que era a musa da turma e protagonizava o disputado show Gal a todo vapor, ou Gal Fa-Tal, no Teatro Tereza Rachel, em Copacabana, o qual será abordado mais adiante neste texto. 

Tanto as Dunas da Gal, quanto o píer vizinho eram frequentados por um pessoal que pregava a transformação ao mesmo tempo pessoal e social, e que ouvia Beatles, Rolling Stones, Cream, The Who, Caetano e Gil, entre outros. Ali havia a prática de conversas filosóficas, de debates sobre comportamento, de atitudes alternativas, de igualdade de gênero, de solidariedade entre os frequentadores e de liberdade sexual, além de surgirem modas, oportunidades de empregos e relacionamentos (que também podiam ser desfeitos). Podia-se pensar a loucura que bem entendesse e tudo isso parecia compensar a falta de liberdade política do período. Para a jornalista e escritora Lucy Dias (2001, p. 92), aquele trecho era “o grande centro irradiador da cultura underground até 1973”. Caetano lembrou que, como em Arembepe, Bahia, “os rapazes não usavam sungas de praia, mas as cuecas mínimas (e um tanto transparentes) que já traziam por baixo das calças. E alguns casais homossexuais (sobretudo femininos) não se esforçavam muito em esconder suas carícias” (VELLOSO, 1997, p. 327). 

Tal território praiano não foi batizado com o nome de Gal por acaso. No início dos anos 1970, já se discutia quem seria melhor cantora do país: ela ou a Elis Regina? Gal tinha uma postura roqueira e sensual, e o seu repertório era mais jovem e audacioso. Por essas razões, era considerada mais moderna e cantava mais alto para a juventude, o que incomodava a sua consagrada concorrente (MOTTA, p. 196, 2000). Na virada para a década de 1980, a gaúcha se sentia frustrada por não ter a popularidade da baiana naquele momento (MARIA, 2015, p. 382). Mas Elis tomava a iniciativa de indicar bons músicos a sua colega, quando não havia vaga para eles em sua banda, assim como lhe prestava solidariedade quando um crítico musical era duro na avaliação de um show. “Se não havia intimidades exageradas, também não havia cara feia” entre elas (p. 375). No programa Conversa com Bial, exibido pela TV Globo no dia 19 de fevereiro de 2021, Gal lembrou o carinho recebido de Elis quando essa a levou até o seu camarim e a maquiou, antes da gravação do programa televisivo O Fino da Bossa, da Record. Nessa ocasião, a primeira era iniciante e a segunda recebia o maior cachê da TV brasileira. No auge de sua fama, Gal convidou Elis para um dueto no especial Maria da Graça Costa Penna Burgos (1981), da TV Globo; na ocasião cantaram “Estrada do Sol” (Tom Jobim e Dolores Duran) e “Amor até o fim” (Gilberto Gil).

A influência de Gal sobre Elis é ouvida na regravação que essa última fez do rock “Cinema Olympia” (Caetano Veloso), incluído no disco Ela (1971), sendo que aquela registrara a mesma música em 1969, no seu segundo disco solo, que era uma profissão de fé do tropicalismo. Gal se tornou a representante do grupo baiano filiado a esse movimento depois da partida de Caetano e Gil para o exílio forçado, em Londres, onde receberam a sua visita, que rendeu novas parcerias musicais. Gal participou do disco Transa (1972), de Caetano, e dividiu com Gil uma apresentação no Student Centre, da City University, em 26 de novembro de 1971, lançada em vinil triplo com o título Gilberto Gil & Gal Costa Live in London ‘71 (2014). Os três colaboraram em outros projetos na década de 1970, como o álbum Temporada de Verão (1974) e o conjunto Doces Bárbaros, esse reforçado por Maria Bethânia.

Em meio a tantas obras que promoviam o diálogo entre música artística e tradições locais, o seu trabalho mais representativo da contracultura é Gal Fa-tal (1972), o primeiro álbum-duplo brasileiro. Trata-se do registro fonográfico do já mencionado show Gal a todo vapor, no qual havia um bloco acústico, em que a artista se apresentava no formato voz e violão, e outro elétrico, com uma banda de rock capitaneada pelo principal guitarrista do tropicalismo, Lanny Gordin (depois substituído por Pepeu Gomes) - e que contava ainda com Novelli no baixo, Jorginho Gomes na bateria e Baixinho na tumbadora. Curiosamente, essa era a parte preferida de João Gilberto, que assistia às apresentações da lateral do palco, e costumava levar a cantora para passear de carro pela cidade, em alta velocidade, quando ela deixava o teatro. O pai da bossa-nova já a considerava a melhor cantora brasileira antes de ela ter gravado um disco, conforme vemos no documentário O nome dela é Gal, de Dandara Ferreira (2017). A produção do espetáculo foi de Paulinho Lima, enquanto a direção artística ficou a cargo de Wally Salomão, autor da expressão “Fa-tal”, encontrada em seu livro Me segura que eu vou dar um troço (1972). Hélio Oiticica - assim como ele, um artista do campo marginal, que circulara entre os tropicalistas - fez a capa.      

Caetano, o autor mais presente no set list de Gal a todo vapor, caracterizou esse show como “o dínamo das energias criativas brasileiras - e todos os artistas, cineastas, jornalistas e jovens em geral reconheciam isso” (Velloso, p. 317, 1997). Embora exilado, havia muitas referências ao cantor baiano, por meio de suas músicas “Como Dois e Dois”, “Maria Bethânia”, “Coração Vagabundo” e “Chuva, suor e cerveja”. O variado repertório era composto ainda por artistas famosos que transitaram pelo tropicalismo (como Jorge Ben, criador de “Charles, anjo 45”), integrantes de grupos musicais jovens (como Moraes Moreira e Luiz e Galvão, dos Novos Baianos, que fizeram a primeira gravação de “Dê um rolê), parcerias marginais (como a de Jards Macalé – autor de “Mal secreto” – e Wally Salomão, em “Vapor barato”), talentos então desconhecidos (como Luiz Melodia, que compareceu com “Pérola negra”), representantes do baião (como Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, lembrados por meio de “Assum preto”), sambistas antigos (como Ismael Silva e Geraldo Pereira, compositores de “Antonico” e “Falsa baiana”, respectivamente), campeões de vendas (como Roberto Carlos e Erasmo Carlos, que cederam “Sua estupidez”) etc. 

Desde que se filiou ao tropicalismo, Gal enfrentou a face mais agressiva do conservadorismo e do moralismo que grassavam no país comandado pela linha-dura dos militares. Ela era xingada nas ruas e até pedaços de comida foram jogados contra o seu corpo (FERREIRA, 2017). Certa vez, levou um tapa na cara quando se preparava para uma sessão de fotos. O agressor completou o seu comportamento violento com um conselho machista: “coloque-se no seu lugar de mulher”, conforme lembrou em sua já referida entrevista a Pedro Bial. Em tempos sombrios, a manifestação política de Gal se dava por meio do aspecto comportamental. A capa do álbum Índia (1973) apresenta uma foto em ângulo fechado da parte pudenda de seu corpo, coberta por uma pequena tanga. Ao passo que, na contracapa, os seus seios estão à mostra. Nas lojas de discos brasileiras, esse produto era coberto por um plástico azul, avidamente removido pelos compradores. Hoje é praticamente impossível encontrar esse disco com a proteção plástica que impedia a visualização imediata das sensuais fotos da baiana. Também permaneceu na memória de muitos brasileiros e brasileiras imagens de TV da artista ao violão, com as pernas abertas, quase a criar uma ilusão de ótica que levava o público a crer que o seu corpo era coberto apenas pelo instrumento musical e os longos colares pendurados no pescoço.     

Essa sua faceta contracultural foi definitivamente abandonada pela abordagem mainstream por volta de 1978, no show Gal Tropical, que gerou o já citado disco homônimo, no ano seguinte. O caminho da experimentação foi retomado em 2011, no álbum Recanto, com arranjos de música eletrônica e produção de Caetano, para quem qualquer artista que se envolveu com a vanguarda em determinado momento de sua carreira sempre poderá contar com a adesão de um público renovado que se interessa por esse tipo de procedimento artístico e acompanha a sua história. Não por acaso, ela cantaria o disco Gal Fa-tal no festival Primavera Sound, realizado neste mês, mas a sua apresentação foi cancelada por motivos de saúde. 

No começo deste texto foram mostradas essas variações de abordagem musical na carreira de Gal, embora não tenha sido citado que ela se envolveu com o pop romântico desossado, para pronto consumo, nos anos 1980. Também há momentos menos memoráveis em seu comportamento político: em 2011, prestou apoio público ao conterrâneo Antônio Carlos Magalhães, ameaçado de cassação por causa da violação do painel eletrônico do Senado. Esses retrocessos, obviamente, não são capazes de obscurecer o fato de que ela é uma das maiores cantoras da História brasileira, considerando a sua afinação, o seu timbre de voz, o seu estilo, a qualidade artística de seu trabalho e a sua popularidade. Assim como a sua contribuição para a resistência cultural à ditadura não deve ser esquecida. A letra de “Divino Maravilhoso” (Caetano Veloso e Gilberto Gil), que ela defendeu em um já mencionado festival da canção, pode ser entendida com a descrição cubista de uma passeata contra o arbítrio imposto pelos militares. E o seu refrão evoca imagens da luta armada ao recomendar: “É preciso estar atento e forte/ Não temos tempo de temer a morte”. Outra composição referenciada neste texto, “Como dois e dois”, promove em seu estribilho pontuado por rimas internas a visão de Brasil cara aos setores de oposição, nos anos de chumbo: “Meu amor/ Tudo em volta está deserto/ Tudo certo/ Tudo certo como dois e dois são cinco”.

Não custa repetir que Gal foi a principal responsável por manter viva a memória dos tropicalistas exilados. Embora não fosse dada a declarações políticas em sentido mais estrito, achava necessário se posicionar em certos momentos. Logo após o exílio de Caetano e Gil, afirmou ao jornal O Pasquim que não podia ficar passiva em relação ao que percebia acontecer ao seu redor, convencida da necessidade de produzir um trabalho coerente com o da dupla (Cf. CONTENTE, 2021). Mais recentemente, aderiu ao Fora Bolsonaro e apoiou abertamente a campanha pela eleição de Lula.  

Conforme o trocadilho no título de seu disco de 1970, lembrar Gal será sempre Legal.

* Romulo Mattos é historiador, professor da PUC-Rio e especialista em música brasileira.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.

Bibliografia 

COELHO, Frederico. Eu, brasileiro, confesso minha culpa e meu pecado: cultura marginal no Brasil nas décadas de 1960 e 1970. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. 

CONTENTE, Renato. Não se assuste, pessoa!: as personas políticas de Gal Costa e Elis Regina na ditadura militar. São Paulo: Letra e voz, 2021. 

DIAS, Lucy. Anos 70: enquanto corria a barca. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2004. 

DUNN, Christopher. Brutalidade jardim: a tropicália e o surgimento da contracultura brasileira. São Paulo: Editora UNESP, 2009.

MARIA, Julio. Elis Regina: nada será como antes. São Paulo: Editora Master Books, 2015. [Versão digital].

MOTTA, Nelson. Noites tropicais: solos, improvisos e memórias musicais. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000. [Versão digital].

NAPOLITANO, Marcos. A síncope das ideias: a questão da tradição na música popular brasileira. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2007. 

VELLOSO, Caetano. Verdade tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. [Versão digital].

Filmes

FERREIRA, Dandara. O nome dela é Gal. Belo Horizonte, MG: Popcorn, 2017.  

Programas de TV

Conversa com Bial. Rio de Janeiro, TV Globo, 19 de fevereiro de 2021.