GABINETE DO ÓDIO

Os rincões sórdidos dos bolsonarismo, por Jean Wyllys

Jean Wyllys conta como em 2013, saiu do gabinete de Bolsonaro a primeira fake news promovida em massa nas mídias sociais contra ele. "A CBN demorou seis meses para emitir um nota desmentindo o meme"

Na noite de 17 de abril de 2016, Jean Wyllys cuspiu em Bolsonaro após apologia ao torturador Ustra.Créditos: Reprodução/TV Câmara
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A extrema-direita brasileira começou a ganhar novo corpo político e espaços na esfera pública a partir da eleição de Dilma Rousseff em 2010 (não por mera coincidência, as eleições que me deram meu primeiro mandato de deputado federal). Sim, Dilma Rousseff teve que enfrentar os ecos da crise do capitalismo financeiro iniciada em 2008, nos EUA - o que gerou o movimento “Ocupy Wallstreet” - e os efeitos da chamada “Primavera Árabe” sobre os movimentos sociais urbanos de esquerda. Tudo isto serviu à erosão de sua popularidade posta em marcha pela imprensa de direita hegemônica e antipetista.

Contudo, Rousseff tinha um inimigo oculto - inserido inclusive em sua própria base parlamentar - que, para citar o verso de Cecília Meirelles, exercia a força surda dos vermes. A extrema-direita brasileira - assentada no Congresso Nacional em mandatos de pastores das igrejas neopentecostais; de membros ou ex-membros das forças de segurança (polícias e Forças Armadas); e no mandato de um saudosista confesso da Ditadura Militar e ligado a milícias urbanas - era e segue sendo misógino e machista. Por isso, não tolerava a presidenta e enxergou em seu gênero a “debilidade” ideal para o ataque. 

Acontece que essa extrema-direita é também e principalmente homofóbica; daí o fato de ela não tolerar a minha presença na Câmara, com os mesmos poderes que ela. 

Por isso, as questões de sexualidade e gênero constituíam o primeiro arsenal usado contra Dilma e contra mim. Em 2013, saiu do gabinete de Bolsonaro a primeira fake news promovida em massa nas mídias sociais, principalmente Facebook, por pastores das máfias neopentecostais, entre os quais se destacava Silas Malafaia: a peça fraudulenta afirmava que eu havia defendido a pedofilia em entrevista à CBN. 

Por mais que vocês pensem jamais terão ideia do que é ser vítima desse crime, dessa violência. Sozinho e sem compreender bem o que estava se passando, tentei de minha forma conter a difamação.

A CBN demorou seis meses para emitir um nota desmentindo o meme, e só o fez após muito apelo de nossa parte e por ela mesma estar sendo atacada por causa da mesma mentira.

Antes dessa mentira, o gabinete de Bolsonaro já havia recortado uma fala minha para a TV, tirando-a do contexto, para sugerir que eu havia chamado o povo de burro. 

O anedótico dessas duas histórias é que, ao fim e ao cabo, foi Bolsonaro quem disse de verdade que o povo era burro e que, em discurso homofóbico na Comissão de Direitos Humanos, expressou a fantasia de “emboscar crianças na saída da escola” - algo semelhante ao que ele faria anos mais tarde com a meninas venezuelanas.

Amigo e admirador de Bolsonaro, o ex-delegado e deputado federal pelo Pará, Éder Mauro, acusado de chefiar grupo de extermínio no Estado (ele mesmo de vangloriou em sessão da Câmara de ter perpetrado vários assassinatos), adulterou criminosamente o vídeo de um pronunciamento meu na CPI do Extermínio da Juventude Negra e Pobre de modo a afirmar o contrário do que eu dizia, a sugerir que o racista era eu quando, na verdade, ele passou todo o tempo da CPI insultando os negros e os pobres. Nessa ocasião, a extrema-direita fora da Câmara já estava sendo regida pela batuta do astrólogo e falsário Olavo de Carvalho. Sua máxima “Acuse-os do que você é; diga que eles é que fazem o que você faz” já estava em curso. 

Processei Éder Mauro e minha vitória gerou uma jurisprudência que segue sendo ignorada: a imunidade parlamentar não cobre a difamação, a calúnia e o compartilhamento de fake news. 

Na fatídica noite de 17 de abril de 2016, em que a direita tradicional unida a essa extrema-direita criminosa e inescrupulosa derrubaram a presidenta Dilma, após ouvir Bolsonaro dedicar seu voto a um torturador e me insultar pela enésima vez, eu instintivamente cuspi em sua cara. Que fez a  extrema-direita na Câmara (agora já contando com um mais um membro da famiglia Bolsonaro)? Adulterou criminosamente o vídeo da sessão de modo a me levar ao Conselho de Ética - eu que havia reagido à apologia à tortura, e não o apologista.

Quando a seita política já estava quase totalmente formada, operando em redes digitais (grupos de WhatsApp e de Facebook) e analógicas (as igrejas neopentecostais), e Bolsonaro já havia se convertido no condutor dessas correntes maléficas, ele conseguiu, de um membro da seita que trabalhava na loja da TAM, o meu assento num voo Brasília-Rio. Havia preparado alguma cilada para mim durante o percurso; pois foi ele o último a embarcar e já entrou filmando. Para minha sorte, havia uma poltrona vazia para a qual mudei. Ele apenas conseguiu me assediar moralmente.

Faço a retrospectiva de fatos em que estive envolvido para 1) deixar claro que fraudes, adulterações criminosas de documentos e situações forjadas sempre fizeram parte do modus operandi da extrema-direita e particularmente do de Bolsonaro; 2) a tolerância das instituições democráticas (a imprensa em especial) com esses procedimentos criminosos por parte de parlamentares apenas porque eram aplicados contra um gay e uma mulher permitiu que Bolsonaro se fortalecesse como condutor da extrema-direita e que esta elevasse o tom dos seus métodos, o que resultou no assassinato covarde de Marielle Franco, e na encenação do “atentado à facada”, vencendo as eleições de 2018; 3) e, logo, não deveria ser surpresa para ninguém a tentativa por parte da campanha de Tarcísio de Freitas de forjar um atentado, mesmo que isto implicasse no assassinato de um inocente; e os esforços de Bolsonaro em acusar criminosamente as rádios do Nordeste de não veicularem sua propaganda eleitoral. 

A extrema-direita é criminosa em toda parte. Quando ela encontra uma personalidade tão ressentida quanto sádica para ocupar o lugar de líder ou de “Messias”, transforma-se numa seita diabólica que amiúde perpetra suas atrocidades em nome de Deus. O bolsonarismo é isto. Como qualquer seita, ela interpela seus membros a partir de suas fragilidades, medos, rancores e ressentimentos. Uma vez cooptado, o membro da seita sofre um processo de ressubjetivação baseada em seus próprios preconceitos e em sua ignorância. Torna-se um solado disposto a matar e a morrer pelo líder. A cooptação acontece em distintas classes e com pessoas de diferentes níveis de educação formal, porque a chave da interpelação está na fragilidade que a pessoa apresenta.

Ao longo desses quatro anos de governo Bolsonaro, a batalha para impedir o crescimento dessa seita política foi intensa. Se tudo correr bem, a democracia colocará limites a ela no próximo domingo, dia 30.

E só então começaremos a pensar sobre o que foram esses anos sob a hegemonia dessa seita. O romancista Frederick Forsyth ao se referir ao nazismo, disse  que não acreditava que na história da humanidade fosse se deparar com uma seita tão louca, e que apelava “aos rincões mais sórdidos da raça humana”. Bom, se vivo estivesse, ele seguramente mudaria de opinião depois de conhecer o bolsonarismo. 

*Jean Wylys é jornalista, escritor, doutorando em Ciência Política pela Universidade de Barcelona e artista visual