Se é verdade que a democracia engendra internamente seus próprios inimigos, podemos afirmar categoricamente que um deles - e dos mais perigosos à vida democrática - é a imprensa que age deliberadamente com desonestidade intelectual a fim de prejudicar agentes ou partidos políticos que contrariem os interesses políticos e econômicos de seus donos.
Este é o caso da imprensa hegemônica brasileiro e seu tanto histórico quanto patológico antipetismo (a permanente campanha de difamação do Partidos dos Trabalhadores e de desumanização de seus dirigentes e parlamentares, principalmente, Luiz Inácio Lula da Silva). Aliás, as histórias do PT e de Lula podem ser contadas, inclusive, a partir de sua difamação por parte da imprensa de direita, uma vez que o partido já nasce difamado por veículos de comunicação, cujos donos enriqueceram bastante durante as mais de duas décadas de ditadura militar, que criaram Bolsonaro, entre outros monstros.
Em função do antipetismo, a imprensa hegemônica brasileira (imprensa de direita) converteu a “Lava Jato” - uma organização política e criminosa de extrema direita envolvendo setores do Judiciário e do Ministério Público que recorreu à “lawfare” e ao desrespeito flagrante do Estado Democrático de Direito - em “salvadores da nação”. O antipetismo também fez com que esta mesma imprensa ajudasse a converter o golpe parlamentar contra Dilma Rousseff em ação legítima. Em momentos assim, em que agentes dos três poderes se associam de modo a tirar criminosamente o mandato de uma presidenta eleita, o que se esperaria de uma imprensa realmente livre e democrática era a defesa da verdade. Mas, no caso da imprensa brasileira, a opção foi pela mistificação e pela desinformação em favor dos golpistas. Entre estes, estava Bolsonaro, que se destacou por ter dedicado seu voto a favor do impeachment ao torturador de Dilma Rousseff, Brilhante Ustra.
E é partir deste tempo que quero abordar a tolerância ou a cumplicidade da imprensa de direita brasileira com o sadismo. Não resta dúvida de que há algo de sádico em alguém que, numa sessão parlamentar, faz apologia à tortura, um crime de lesa-humanidade. Entretanto, este gesto de Bolsonaro nunca foi tratado pela imprensa com a responsabilidade que se espera dela. Ao contrário, todas as expressões de sadismo por parte da extrema direita em suas manifestações de rua desde 2015 até 2018 - manifestações em que Bolsonaro, com a ajuda dos militares saudosos da ditadura, emerge como condutor das baixas e danosas emoções políticas -, todas essas manifestações foram ignoradas ou normalizadas pela imprensa.
Bolsonaro passou a conduzir o ódio e o sadismo daquelas pessoas que não se sentem premiadas pela vida, logo, “injustiçadas”, que não reconhecem sua mediocridade, nutrem uma inveja doentia das pessoas que triunfam e têm medo de qualquer transformação social porque não estão seguros de que terão algum lugar na nova ordem.
Em “Amor à vida”, o filósofo, cientista social e psicanalista Eric Fromm explica que os sádicos fazem sempre um apelo doentio à ordem e à disciplina militar e demandam sempre por um líder ou algum superior ou entidade maior que lhes autorize (este superior pode, inclusive, ser o “passado glorioso”, “a pátria” ou “a Igreja”). Contudo, são sempre cruéis e insensíveis com aqueles que são vulneráveis ou percebidos como hierarquicamente abaixo deles.
Isto pode explicar a obsessão e a crueldade dos fascistas em relação às minorias étnicas, sexuais e políticas; e o ódio deles a qualquer política que dê, a estas minorias, o status de cidadãos plenos. Isto explica o ódio aparentemente irracional a Lula e à sua política de inclusão e empatia. Os sádicos - seja qual for a intensidade em que se expressam - querem manter intacta a sociedade em que podem exercer sua crueldade ao mesmo tempo em que obedecem ordens de superiores.
São muitos os exemplos de sadismo por parte de Bolsonaro e de seus eleitores, sejam os orgulhosos, sejam os canalhas envergonhados que, na solidão da urna, votam no fascismo. Se, ainda de acordo com Fromm, o sádico objetifica as pessoas vulneráveis e não tem, em relação a estas, qualquer compaixão ou empatia, podemos afirmar sem medo que o comportamento de Bolsonaro e sua seita durante a pandemia de Covid-19 foi o de inegável sadismo. Enquanto centenas de milhares de pessoas agonizavam sem oxigênio em hospitais, Bolsonaro e sua seita faziam troça das vítimas e estimulavam a infecção.
Mesmo neste momento tenebroso, o comportamento da imprensa em relação a Bolsonaro era ambíguo. Salvas as raríssimas exceções, o sadismo do presidente e suas frequentes mentiras não foram denunciados claramente. E a corrupção movida por seu governo, no momento mais doloroso porque passava a nação, nunca teve o devido destaque. Se compararmos esta cobertura jornalística à cobertura das ações da “Lava Jato” - todas objetivando prejudicar Lula e o PT sem apresentar provas - podemos dizer que a imprensa mais agiu como assessoria do governo, passando pano para seu sadismo.
Neste mesmo espírito de assessoria, a imprensa brasileira busca colocar panos quentes sobre mais um exemplo do sadismo de Bolsonaro. Em entrevista ao New York Times, Bolsonaro afirmou que estava disposto a comer a carne de um indígena que estava sendo cozido com bananas, e que só não o fez porque ninguém quis acompanhá-lo em seus impulsos canibais. Esta fala repercutiu internacionalmente, claro. Primeiro pelo óbvio sadismo que ela expressa, segundo porque, para “explicar” e “justificar” sua crueldade, Bolsonaro inventou a história de que os indígenas Ianomâmis são canibais.
A campanha de Lula nesse segundo turno das eleições decidiu dar publicidade a mais esse sadismo de Bolsonaro. E qual foi, então, a reação da imprensa hegemônica brasileira? Ora, atacar Lula, claro. Acusá-lo de “rebaixar” a campanha eleitoral. Em relação ao sadismo de Bolsonaro e sua mentira, nenhuma palavra. Esta imprensa sequer relaciona a maneira como Bolsonaro expressa sua crueldade em relação aos vulneráveis (não é um mero detalhe o fato de que seria de um indígena a carne que ele disse que comeria!) com o sadismo de seus eleitores que, volta e meia, viralizam nas mídias sociais. Esta semana, um idoso bolsonarista disse num supermercado que seu ídolo mataria a todos os pretos, “pessoas feias”, segundo ele; e uma professora do Paraná fez a saudação nazista em plena sala de aula.
Não precisa ser pesquisador em sociologia, comunicação ou ciência política para enxergar o sadismo como a base de identificação entre Bolsonaro e sua seita. Basta ser um jornalista honesto intelectualmente, artigo raro na imprensa antipetista. Contra o PT, para impedir que Lula seja mais uma vez presidente, esta imprensa acha que vale tudo, inclusive passar pano para sádicos.
As questões finais que se impõem são: quanto de sadismo há no comportamento de jornalistas que, sob a desculpa de estar cumprindo ordens, prestam-se a suavizar a crueldade de Bolsonaro e normalizar sua mitomania? Quanto de sadismo há no antipetismo da imprensa brasileira?
*Jean Wyllys é jornalista, escritor e doutorando em Ciência Política na Universidade de Barcelona; autor de “O que será” (Objetiva, 2019) e de “O que não se pode dizer”, em parceria com a filósofa Marcia Tiburi (Civilização Brasileira, 2022).
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