A ameaça da falta d’água não se explica só pelas mudanças do clima – Por Pedro Michelutti Cheliz

A ameaça atual de falta d’água não tem origem apenas em problemas decorrentes das variações climáticas, mas também numa série de ações imediatistas que foram tomadas nos intervalos entre os sucessivos períodos de estiagem

Reservatórios com nível baixo de água, e afetados por intenso assoreamento, no interior paulista (cidade de Araraquara-SP) / Foto: Pedro Michelutti Cheliz (2021)
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A falta de chuvas, o ar seco e os vários incêndios que estão sendo vistos em vastas áreas do interior do Brasil neste Inverno de 2021 tem despertado espanto e preocupações. Dentre elas destaca-se a ameaça de falta de água. Somente no estado de São Paulo, mais de 1,3 milhões de pessoas de diversas cidades já vivem com racionamento de água, e outras tantas podem vir a passar pela mesma situação em breve. 

Muito se discute das contribuições das mudanças no clima e mesmo de intensificações destes períodos de estiagens para este problema estar acontecendo, mas esses não são os únicos fatores que levaram a essa crise.  Ainda que a diminuição das chuvas este ano seja bastante expressiva, ela não era de todo inesperada. O padrão das chuvas no Estado de São Paulo dos últimos 100 anos, por exemplo, é marcado por ocorrência a cada 10-15 anos de período de 2 a 5 anos com quantidade de chuvas bastante abaixo da média, como mostram estudos como o do professor João Lima Sant’Anna Neto da UNESP. Essas periódicas diminuições das chuvas reduzem também a quantidade de água que se infiltra nos solos, diminuindo o nível dos lençóis de águas subterrâneas, e por consequência fazendo secar ou diminuir o fluxo de água das nascentes de rios situadas em terrenos mais elevados. Isso leva, assim, a uma diminuição do fluxo das águas de vários dos rios usados para o abastecimento de muitas cidades brasileiras. Desta maneira, como se trata de um fenômeno previsível e que se repete de tempos em tempos, seria necessário que o poder público e a sociedade se preparassem com antecedência para enfrenta-lo, afim de evitar problemas como a falta de água que agora ameaça muitas cidades brasileiras. 

Gráfico elaborado pelo professor João Lima Sant´Anna Neto, da Unesp, mostrando variação das chuvas no estado de São Paulo num intervalo de mais de cerca de 100 anos. Observar a ocorrência periódica ao longo do tempo de anos com volumes totais de chuvas bastante reduzidos em relação a média histórica. Retirado do trabalho acadêmico intitulado “TENDÊNCIA DAS CHUVAS NO ESTADO DE SÃO PAULO: uma contribuição aos estudos sobre as mudanças climáticas regionais nos últimos 100 anos".

Infelizmente, algumas opções de uso dos solos que vem sido feitas ao longo das últimas décadas tornaram muitas cidades mais vulneráveis aos problemas trazidos por tais variações climáticas. No Brasil, boa parte da legislação de uso dos solos (determinar o que pode e o que não pode construir ao longo de cada parte dos territórios) é deixado a cargo dos municípios.  Com exceção de certas áreas resguardadas por leis federais (tais como determinadas unidades de conservação, ou áreas mínimas de proteção em torno dos rios), os municípios dispõe de autoridade e a responsabilidade de legislar sobre o que e o quanto pode-se construir em cada porção de seus territórios  Esse poder territorial, inclusive, é o grande trunfo que os municípios tem na estrutura do estado brasileiro, se opondo a sua fragilidade orçamentária: as receitas dos municípios correspondem a menos de 20% do que se arrecada com impostos no Brasil, com mais de 50% ficando com o governo federal.

Esta combinação (grande poder de determinar o uso das terras, e pequeno acesso direto aos recursos levantados por impostos do país) acaba muitas vezes por contribuir para os municípios se tornarem mais vulneráveis a pressões de grandes grupos econômicos interessados em liberação de áreas vistas como mais adequadas para seus interesses imediatos. Infelizmente, ao longo das últimas décadas tem havido uma tendência de uma parte expressiva dos municípios autorizarem a expansão das cidades mesmo em áreas que apresentam diferentes tipos de fragilidades ambientais. Isso leva inclusive a ocupação de áreas com solos com características tais que os fazem serem facilmente desagregados. A ocupação próxima a estas áreas sensíveis contribui para, no momento das chuvas, ao aumento ali do fluxo superficial de águas. Com isso, pode haver um volume maior de enxurradas sendo direcionado para esses locais de solos vulneráveis, aumentando ali a remoção (erosão) de partículas de solo. Esse material muitas vezes depois de retirado de seu local original acaba sendo transportado pela chuva aos fundos de vales, onde fluem os rios. Passa a haver uma dinâmica em que a quantidade e o tamanho destas partículas de materiais carreados até os rios ficam acima da capacidade de transporte dos próprios ribeirões. Com isso, os canais fluviais por vezes passam a ser entulhado por areia e outros sedimentos, e a quantidade de água que escoa em superfície diminui, num processo chamado de assoreamento. A repetição de tal processo no tempo vem contribuindo para diminuir a quantidade de água imediatamente disponível para o abastecimento de muitas cidades do Brasil, e torna maior a chance de desabastecimento ou rodízio de água em momentos de redução de chuvas como o atual. 

Além da questão das leis municipais serem frequentemente insuficientes, e muitas vezes autorizarem o uso dessas áreas de solos frágeis, outro fator agrava o problema: a falta de cumprimento das leis de proteção de áreas ambientalmente sensíveis existentes. Estudos como o do engenheiro Ivan Menzori e do professor Luis Falcoski da UFSCAR mostram como muitas vezes as leis municipais que regulam estas áreas ambientalmente suscetíveis não são cumpridas. A despeito das normas municipais, são autorizados empreendimentos de grandes dimensões, e depois, com o fato consumado, se negocia a aprovação de novas leis criando exceções e regularizando as obras antes irregulares. A repetição deste processo, ao longo do tempo, leva ao acirramento de muitos problemas ambientais, inclusive do assoreamento dos rios. 

A necessidade de se evitar o uso dessas áreas de solos frágeis não implica em paralização da expansão das cidades e das plantações: existem muitas áreas com baixo risco ambiental disponíveis para expansão urbana e rural espalhadas ao longo dos municípios brasileiros. Não seria impossível conciliar a expansão urbana e preservação dos solos suscetíveis e recursos hídricos para amenizar crises de abastecimento de água, mas infelizmente muitas vezes tem predominado o imediatismo, e em momentos como os atuais sentimos as consequências destas práticas inadequadas.

Esta diminuição das águas superficiais (dos rios, lagos e reservatórios a céu aberto) mais facilmente acessíveis tem levado a um aumento expressivo da busca por águas subterrâneas em muitas cidades brasileiras. Em numerosas áreas do sudeste, centro-oeste e sul do Brasil destaca-se o uso das águas do Aquífero Guarani, uma das grandes reservas de água subterrânea das américas. Infelizmente, o grau de comprometimento das águas superficiais contribui para um uso por vezes tido como excessivo destas reservas subterrâneas. Tal prática levanta preocupações, na medida que cidades com alto grau de dependência deste tipo de fonte registram expressivos abatimentos (rebaixamentos) da altura do nível piezométrico (nível a que a água de um aquífero se encontra à pressão atmosférica) dos aquíferos nas áreas urbanas. Cidades como Araraquara e Ribeirão Preto, por exemplo, mostram diminuições locais dos níveis do Aquífero Guarani já na ordem de dezenas de metros. Igualmente, a fragilidade diante de pressões dos municípios no momento de realizar as leis que regulam o uso dos solos pode vir a prejudicar também essa modalidade de abastecimento hídrico. Sobretudo pela concessão de autorizações para expansão urbana ou mesmo construção de distritos industriais em áreas por vezes tidas como de extrema vulnerabilidade a contaminação de aquíferos, enquanto outras áreas com menores fragilidades (mas localizadas em locais tidos como menos valorizados) permanecem disponíveis. 

De fato, mesmo a insuficiente regulação das águas retiradas de aquíferos é um problema que dificulta a melhor organização do uso desse importante recurso natural, e agrava as chances de desabastecimento. Sobretudo quando consideramos que não somente o poder público, mas também o setor privado pode realizar a perfuração de poços tubulares profundos para ter acesso a águas subterrâneas. As leis brasileiras são bastante rígidas e claras sobre a questão dos requisitos e autorizações necessários para abrir tais poços. Infelizmente, não existe clareza semelhante sobre os responsáveis pela fiscalização dos mesmos após sua abertura. Muitas vezes não se tem um controle rígido de quanta água está sendo retirada por tais poços privados ao longo do tempo, sobretudo na zona rural. Dado o alto custo deste tipo de intervenção, ter um poço tubular profundo particular não é algo factível para todos. De maneira que temos um quadro em que grandes fazendas, usinas e condomínios fechados retiram de poços profundos privados as águas necessárias para suas atividades, enquanto o restante da população é dependente da rede geral de abastecimento. Na crise hídrica de 2014 em São Paulo, a intensa falta de água de então levou os contrastes de tal situação a ficarem particularmente evidentes: enquanto extensas áreas de numerosos bairros de cidades como Itu permaneciam sem água, em parte dos condomínios fechados locais o abastecimento continuava sem interrupção, levando a protestos da porção da população desassistida.  

Nota-se, assim, que a ameaça atual de falta de água não tem origem somente nos problemas decorrentes das variações climáticas, mas também em uma série de ações imediatistas que foram tomadas nos intervalos entre os sucessivos períodos de estiagem. Cada um destes recorrentes tempos de chuvas abaixo da média se dá em paralelo a mudanças de usos dos solos que tornam muitas cidades brasileiras mais vulneráveis a estas mudanças do clima. As decisões e práticas que contribuíram para esta situação poderiam ser repensadas, para buscar evitar o agravamento deste problema no futuro próximo.

*Pedro Michelutti Cheliz é geógrafo, geólogo e arqueólogo formado pela UNICAMP.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.